segunda-feira, 17 de setembro de 2012

O ESTADO DE EXCEÇÃO

Vendas Novas, 18 de Setembro de 2012

NÃO fiquei impressionado, não fiquei extasiado com as colossais manifestações do último sábado, nas principais cidades do país. Mas estou contente. Fico contente, sobretudo, por ter sido uma ação genuína de exercício cívico e democrático num país que o não é. É um dia para recordar, um dia em que até a polícia, contrariando velhos hábitos, se portou com uma correção digna de louvor, mas só isso, o que já não é pouco. Afinal, nem todos descendem da morca.

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Mas, para aqueles que esperam grandes mudanças ou o fim da austeridade, pois que esperem, mas sentados, para não cansarem as perninhas. Estamos em guerra civil, uma guerra civil económica declarada pelos poderes fácticos ao mundo do trabalho. Quem se espantou com a intenção dos quatro cavaleiros do Apocalipse – Relvas, Borges, Gaspar e Coelho – de transferirem diretamente dos salários para o capital 5,75%, ao mesmo tempo que o governo determinava juntar ao prejuízo dos trabalhadores uma comissão de 1,25% pelo trabalho que a coisa dá, devia espantar-se apenas com o descaramento, com o despudor. Com esta trafulhice, sem mexer uma palha, só o Belmiro de Azevedo embolsa mais de 20 milhões. As transferências costumavam ser mais subtis. São mais subtis no resto do mundo.

O que é digno de nota, pela originalidade, é que a decisão não foi tomada em conselho de ministros, foi assim a modos de quem gere uma quinta e manda tosquiar os carneiros.

A guerra civil que atrás mencionei começou logo a seguir à derrota da Alemanha, Itália e Japão e teve sempre os seus altos e baixos. Vem daí a concepção de Estado Social e períodos houve em que os trabalhadores lograram obter significativos ganhos. Mas já lá vai o tempo em que, da riqueza criada, 30% era para o capital e 70% para o trabalho. A razão inverteu-se e tem tendência a piorar. Escusam os marxistas de virem carregados de otimismo dizer que a coisa vai mudar e que o capital será derrotado. Marx nunca se atreveu a tal profecia. Não é impossível que sejamos todos transformados em chineses, a fim de sermos competitivos. Já há quem, além de contar a vidinha no Face Book, aceite colocar um chip atrás da orelha.

Já o disse em crónicas anteriores: isto a que se chama crise é um modo de produção bem engendrado. Sem crise não há capitalismo. É o mede que a crise gera que cria a submissão dos povos e faz a alegria dos mercados: descem os salários, sobem os juros, sobem os lucros, rastejam os políticos com fome de lentilhas. É a vida, como diria o Guterres.

Há pouco tempo, numa entrevista, Siza Vieira dizia ter a sensação de estar a viver numa ditadura. Bom, ditaduras são todas as formas de governo em que o povo se demite, ficando muito contentinho se o deixam depositar um papelinho numa urna. Curioso: conheço uma viúva que tem em casa uma urna, onde guarda as cinzas do seu falecido.

O que estamos a viver é um estado de exceção, em que os direitos dos fracos são letra morta e à ganância dos ricos nenhuma lei se opõe, para não enervar os mercados.

Esta sexta-feira está cheia de promessas. Reúne-se o Conselho de Estado a pedido de alguém que – dizem – é presidente deste desgraçado país. Eu não sabia que este país tinha presidente. Vão ouvir o incrível Gaspar, que é uma espécie de pitonisa que nunca acerta nos prognósticos, só nas maldições. Ele não é um ministro, é uma assombração cuja competência (completamente fictícia) lhe foi outorgada por uma imprensa protetora do estado de exceção em que vivemos.

Pode bem ser que, já depois de escritas estas linhas, se tenha consumado o divórcio dos coligados para nos tosquiarem. A missão do tal presidente de que me falaram é proceder à reconciliação, mas é forçoso que sejam desarmados. Se não lhes tirarem as facas, vai haver sangue. É melhor que não se cruzem na cozinha.

Bom seria que o angolano de Massamá voltasse para casa, se dedicasse às farófias e tomasse consciência que não tem vida para isto.

Mas temo que o outro angolano, este de Tomar lhe diga: Força Pedro, continua, tens uma missão e, eu, muitos negócios por concretizar. Atença que eu disse força, não disse forca.

A missão é conduzir-nos à miséria, regenerar-nos através do sacrifício. Uma crucificação. Quando a missão chegar ao fim, o país chegou ao fim também.

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