segunda-feira, 24 de abril de 2017

DA IRRELEVÂNCIA CRÍTICA

V.N. 24 de Abril de 2017

Uma sociedade sem crítica é uma estufa propícia ao culto das falsas memórias, dos falsos valores e da acefalia, mas uma sociedade que em vez da crítica usa a má língua, como seu sucedâneo, o dizer mal por dizer mal, os ódios de estimação e os recados e recadinhos, não é melhor. Pode até ser pior.

Num tempo de relativismo moral, factos alternativos e verdades de geometria variável, faz muita falta aquela velha postura do ridendo, castigat mores. Uma crítica bem-disposta das nossas fraquezas individuais e colectivas, sem azedumes, integradora das diferenças, irreverente sem ser ofensiva. Isto exige uma grande capacidade de nos criticarmos a nós próprios, para nos não colocarmos numa nuvem doirada para assombração dos mais, sem o que toda a crítica será irrelevante.

Esperando o melhor de tudo isto, habituei-me a ver com regularidade um programa televisivo de crítica à actualidade social e política, que habitualmente era apresentado de forma bem-humorada, e bastante bem informada. Refiro-me ao Eixo do Mal.

Mas tudo envelhece: nós, as ideias, as coisas e o mundo. Talvez seja desejo de consolação dizer-se que o envelhecimento nos traz sabedoria. É preciso que se prove que assim seja, pois que até o vinho corre o perigo de se tornar vinagre, e não o néctar que se esperava. Mais do que à sabedoria, os velhos, pela nostalgia, tendem a render-se aos modelos a que se habituaram, eventualmente como consequência das dores reumáticas. Para eles, tudo o que não encaixa nos seus conceitos esclerosados – nos seus preconceitos –, nos seus hábitos de dizer o que se espera que digam, é liminarmente repudiado. Limitações da formatação mental. Perde-se a imaginação, esmorece o discernimento e só sobra o vinagre e as respectivas moscas. Terá isto a ver com o «eixo»?

A velhice traz também uma grande carga de pesporrência, esgrimida como uma auto-suficiência advinda da experiência – justificam-se os velhos –, confundindo-se assim experiência com a perícia que o treino dá, porque experiência não vem do que se repete vezes sem conta, mas do muito que de novo se faz, como quem rega planta.

Entendo que os comentadores axiais estão velhos, muito velhos: sobra-lhes vinagre e falta-lhes o azeite. Todos eles. Digamos que a nota mais negativa vai para a plumitiva e caprichosa Clara Ferreira Alves, que fala em voz on e em voz off de forma torrencial e redundante, num discurso de intolerância e autoconvencimento que pede meças às velhinhas que lêem o Correio da Manhã ao pequeno-almoço. Um pouco de humildade intelectual ficava-lhe bem; menos azedume apocalíptico era bom para todos.

No último programa (22/04/17), ocupado quase todo com o não assunto de fabricação mediática do sarampo, sarampelo sete vezes vem ao pêlo, olhei para aquelas alminhas e pensei: tenho de mudar de lentes. Meu Deus, meu tudo, que até nas pernas és cabeludo: Quatro Diáconos Remédios!?

É evidente que as liberdades individuais não podem ser absolutas, quem assim as entender procure uma ilha deserta, se ainda houver. Mas, francamente, quando oiço falar em proibir e em obrigar – também estou velho, é o que é – fico todo arrepiado. É que eu sei que atrás da orelha de cada português há um Salazar que murmura, e tenho muito medo dos que têm o ouvido apurado.

O que será que os axiais não perceberam, no caso da falta de vacinação? Que a jovem falecida, mesmo que a vacina fosse obrigatória, estaria sempre isenta, por razões de intolerância? Que metade dos contaminados tinham sido vacinados?

E ai, o Marques Lopes, a confundir conhecimento com ciência e esta com verdade! Naquele momento, Heisenberg e Popper deram três pinotes na tumba…

No mar enorme que é o conhecimento – e há conhecimento que é mau e falso – o conhecimento científico é apenas uma praia com coqueiros; para apanhar os cocos é preciso trepar. Quando se trepa, nem sempre há cocos – princípio da incerteza – e quando os há, melhor serão os que estão para vir: princípio do falseável.

Meu caro amigo, tenha cuidado com o empirismo, por mais evidente que seja ser ele a fonte do conhecimento – Duarte Pacheco Pereira não diria melhor – mas consulte-se o dicionário, porque um dos significados de empirismo é precisamente o que tanto o incomoda: a charlatanice.

Fico à espera de saber, de forma não científica, se o Eixo quer cair em graça ou ser engraçado. Eu preferia que fosse crítico, mesmo que a graça fosse pouca, mas bem-humorado e pedagógico. Pelo caminho que vai, está a tornar-se irrelevante, uma coisinha para encher um buraco na grelha.

ABDUL CADRE

segunda-feira, 3 de abril de 2017

A IMORALIDADE DA MORAL

Histon, 2 de Abril de 2017

Andava eu no secundário, e era um tempo em que se impunha à miudagem uma disciplina indecente a que os ditadores da formatação ideológica e da castração do espírito crítico chamavam «Religião e Moral». Creiam que era uma coisa medonha que chegava a ser repugnante. Imoral, pode dizer-se.

No entanto, veja-se o paradoxo, isto proporcionou alguns resultados positivos, que não estavam previstos nas intenções dos cruéis mandadores. Dava-se o caso de alguns dos jovens menos formatáveis criarem anticorpos de tal ordem que tudo o que ali se dissesse, por verdade que fosse – e é claro que não era – logo era tido por mentira.

Num dos anos, nesse tempo de tortura, aparecia-nos a dar aulas um padre, que era uma caricatura digna de ilustrar A Velhice do Padre Eterno. Baixote, a condizer com o seu próprio carácter, todo vestido de gato pingado, tinha tonsura e guarda-chuva e começava todas as aulas com um peditório, ou antes, uma extorsão aos pobres desgraçados de quantos tostões pudesse. Era para a Conferência de São Vicente de Paula, dizia ele, e quando a colheita não lhe parecia suficiente, por critérios que só ele sabia, berrava desalmadamente que éramos todos hereges, comunistas, pagãos e outras coisas mais.

Um dia, um mal-avisado gaiato lembrou-se de dizer que, mesmo que tivesse, não dava nem um tostão para aquilo, dado não ser católico e os pais já terem requerido autorização para não assistir àquela catequese.

De que te havias de lembrar, rapaz!

Se ainda fores vivo – isto foi há tantos anos! – estarás de certo lembrado das chapeladas que apanhaste no lombo e dos impropérios que ouviste…

Bom foi o guarda-chuva, devido a tanta raiva, ter-se partido. Melhor ainda foi ter chovido a cântaros e o cangalheiro de Cristo, se ter visto obrigado a regressar ao seu abrigo cavernoso que imaginávamos como próprio de qualquer lobisomem, com a sua encharcada farda de luto colada ao corpo.

Uma contínua, que muito lamentava a nossa sorte, vendo a nossa satisfação pela molha do padre, chegou ao pé de nós e disse: «não fiquem assim tão satisfeitos, porque erva ruim não morre».

Nós não desejávamos a morte da aventesma, bastava-nos que partisse uma perna.