segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

AMANHÃ O LEVIATÃ

Histon, 31 DEZ 2018

Por via do nosso condicionamento moral, mental e comportamental, cada um de nós age pelo padrão de cultura que lhe coube, dado que é fruto da cultura onde nasceu. Neste lado do mundo onde decorre a nossa circunstância, mesmo os mais livres e de maior espírito crítico não conseguem isentar-se das sequelas nefastas do judaico-cristianismo, que se desenvolveu por milénios, criando uma moral de base inquisitorial, cruel, impiedosa e hipócrita, onde tendemos às separações irredutíveis: nós e eles, nós os bons, eles os maus. É comum negar-se a humanidade aos que são diferentes, aos que crêem, pensam e agem diferentemente de nós.

Este é o nefasto entendimento, o substrato dos comportamentos ostracizantes de muitos grupos sociais; o alimento ideológico dos que pensam, mesmo que o não digam que «quem não é como nós nem a vida lhe devia ser permitida». Esta perversidade, tida por muita gente como já curada, não o foi, o vírus encontrava-se apenas adormecido e ela aí está rediviva a espalhar-se pelo mundo.

Mais do que no passado, esta lepra encontra hoje as mais propícias condições de contágio: meios de comunicação eficientíssimos, ainda por cima gravemente infectados de mercado e amoralismo; condições sociais e cibernéticas favoráveis à cultura virulenta.

Os ingénuos não podem deixar de ver os sinais que não querem ver, mas esforçam-se por acreditar que assobiando a coisa passa. Fazem por diminuir as apreensões dizendo que os movimentos ameaçadores a que assistem são inorgânicos, e assim pode ser que não seja nada. Também foi assim na Bizâncio cercada: os que a deviam defender discutiam o sexo dos anjos. Pensam até, erradamente, que os sistemas sufragistas, a que chamam democráticos, têm condições para superar a crise, mas não têm, principalmente por não serem verdadeiramente democráticos, mas tão-só sufragistas, e o sufragismo permite que se sufrague o fim do sufrágio.

Agrava o entendimento do problema a crença comum de que o mal advém dos líderes populistas, mas isto é ver as coisas do avesso. Não são tais líderes, simples oportunistas de ocasião, que fazem o populismo, é o populismo que faz esses líderes. O líder aparece – populista ou não – como fruto de uma invocação mágica das massas.

Sou muito criticado quando digo que atrás da orelha de cada português, por mais democrata que se afirme, há sempre um Salazar que sussurra. Entenda-se com isto que Salazar já ali sussurrava antes de ter nascido e continuou a sussurrar depois de ter morrido, porque não se trata de uma pessoa, de um indivíduo, trata-se de um arquétipo. Se houver muita gente a ouvir, prestando atenção aos sussurros, forma-se a massa crítica necessária para a desgraça conhecida de sempre.

Amanhã, no Brasil, uma figura boçal e caricata toma posse como presidente da Federação. Clone mimético do mussolínico Trump, Bolsonaro é um arquetípico, como o foi Salazar para os portugueses e Hitler para os alemães. Não vale a pena perguntarmo-nos se o que foi antes tragédia vai ser agora comédia; trata-se do mesmo drama. Mesmo que uns tantos possam rir, a maioria há-de chorar.

Bom, mas o que importa reter é que não são os bolsonaros que impulsionam os fenómenos, eles são impulsionados, eles são catalisadores, quem impulsiona são as massas ignaras e ululantes desejosas de pastor; são elas que entronizam quem as possa tosquiar.

Estas monstruosidades humanas conduzem as massas à desgraça, não porque queiram precisamente isso, mas porque as massas desejam e precisam, porque as massas fazem a invocação.

Se quiséssemos usar a própria linguagem das milícias evangélicas brasileiras que levaram o Mito aos ombros até ao poder, toda a mitologia apocalíptica e as referências ao anticristo assentariam como luva. Em Bolsonaro, até o episódio das facadas, provavelmente fictício, tem uma carga simbólica enorme. Estes líderes são, sob este ponto de vista, o Leviatã, nascem da irracionalidade, agem pela bestialidade.

Amanhã, toda a lusofonia estaria de luto, não fosse haver demasiada gente a pensar que não há defunto.

sábado, 15 de dezembro de 2018

AVISO AOS DISTRAÍDOS

Desconfiem muito de quem tenha a boca sempre cheia de povo; com a boca cheia, mesmo a sério, não sobraria apetite para o almoço. Assim, sendo o palrador anafado, ficaremos a saber que é um trafulha, ou demagogo, para usar o eufemismo que muito por aí ecoa. Pode bem ser, até, que o tal quem seja romano, daqueles que tinham um pauzinho para provocar o vómito; vomitava o povo e servia-se do lagostim.

Mas povo? O que é povo? O Pinto Balsemão? O trolha que, perdido de bêbedo, espanca a mulher, ou o violador de criancinhas?

Povo é uma figura de retórica muito usada pelos caçadores de votos e pelas suas almas gémeas, os facebookistas que, para provarem que estrão vivos, carregam os políticos com os pecados que eles próprios têm.

– Quem diz é que é, quem diz é que é – gritam os putos na escola.

Eu sei que há políticos que merecem os mais feios epítetos, mas também sei que a maioria os não merece.

Pode bem ser que me equivoque, mas é minha convicção que todos os facebookistas azedos que acusam os políticos, generalizando, são, sem excepção – porque azedo é assim – o que uns políticos são, mas não são o que a maioria deles é.

HIGIENE PLUMITIVA

Há dias, um correspondente facebbokista, sentindo-se criticado no referente às suas useiras partilhas mais do que criticáveis, barafustava dizendo que não admitia censura. Que abuso do conceito de censura!

Será que quererá dizer na sua que os mais têm de comer e calar?

Censura é outra coisa, é não nos deixarem dizer coisas verdadeiras, pertinentes e justas, não é dizerem-nos que o que estamos a dizer não é verdadeiro, nem pertinente nem justo. Afinal, se todos tivéssemos o cuidado de usar o triplo filtro de Sócrates, esta conversa seria inútil.

Censura sei bem o que é e sofri-a em pleno – coisa que presumidamente o tal correspondente não deve saber o que seja – quando escrevia no Notícias da Beira (Moçambique). Tempos idos, que se repetirão em breve, claro que em outros moldes, à Bolsonaro, que é o que os sites que o meu correspondente frequenta preparam.

Mas é bom que se lhe diga, para que não se confunda, que quando um chefe de redacção ou um director de um jornal impede a publicação de textos injuriosos não está a exercer censura, está a zelar pela dignidade e pela ética do jornal.

Se o Facebook cumprisse rigorosamente o seu próprio regulamento, mais de metade do que por aqui anda não seria publicada; obviamente que não seria censura, mas uma questão de higiene. Não o faz e é pena. Só que o pilim fala mais alto. E a lógica de o ganhar diz quanto mais rasteiras são as coisas mais dinheiro dão.

TODA A TIRANIA É INOCENTE; TODOS OS ESCRAVOS SÃO CULPADOS.

Cansado dos «amigos» de ocasião que querem que eu goste de fake news e de sites da internacional ultra-direitista, pus há dias um post com a promessa – foi promessa, não foi ameaça – de bloquear quem me pareça alinhado com a doença mental que está a conduzir o mundo para um desastre conhecido.

Alguém que se sentiu picado – e quem se pica alhos come – abespinhou-se, que isto era censura. Francamente. Censura? Que falta de respeito pelo conceito, que abastardamento das palavras!

A liberdade não é irrestrita. Por exemplo, apelar à violência não se enquadra em qualquer direito, é um crime. É evidente que a internacional ultra-direitista não apela directamente à violência, é hipocritamente sofisticada, cria apenas as condições. Viu-se nos USA, viu-se no Brasil, está a ver-se na França, na Bélgica, na Holanda. Em Portugal querem até uma manifestação de coletes amarelos, sem aludirem sequer a aumentos nos combustíveis (que por sinal baixaram e baixam de novo para a semana que vem), o objectivo, é apenas parar o país. Porquê? Porque sim.

A internacional ultra-direitista percebe muito bem como se catequisam as massas e como se acarneiram as mesmas apelando aos seus instintos mais primários. Levaram à perfeição a transmutação da mentira em verdade. A vontade de acreditar no seio das massas é enorme e os meios cibernéticos espalham a peçonha de forma vertiginosa. Inventa inimigos, calunia, mente, usa o descontentamento da classe média, procura estabelecer o caos. Em nome da liberdade vai criando as condições para nos roubar a liberdade.

E nós vamos deixando.

Militantes conhecidos desta internacional ultra-direitista estão a introduzir-se nas instituições do Estado, nos meios de comunicação e dominam sites que os tolos, os ingénuos e os colabo partilham. Têm preponderância nas redes sociais.

Os desprevenidos, os ingénuos e os azedos ajudam a espalhar a peçonha.

A cultura peçonhenta que se instalou é o substrato do silêncio e da noite que se anuncia. Foi assim nos anos trinta do século passado, é assim nos dias que correm.

Quem planta cardos não pode esperar colher flores de cheiro.

Os falsos ingénuos que fingem não saber o que se passa e se esforçam por acreditar que as mentiras que espalham são verdade, fazem lembrar o Fox Mulder – lembram-se? – que tinha escrito na janela: I want to believe! É a vontade de acreditar que cria estes falsos ingénuos, que acumulam habitualmente com a condição de imparciais: vêem um matulão a bater em um desgraçado e nada fazem, julgando que a gente não percebe que objectivamente estão do lado do mais forte.

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

NO RESCALDO DO EXORCISMO BRASILEIRO

Vamos lá tentar raciocinar. Assentemos nisto: no Brasil a corrupção é muita e está instalada em todas as esferas, seja do poder político, seja dos muitos poderes fáticos, inclusive na comunicação e na Justiça.

A corrupção tem dois polos: o corruptor e o corrompido. Quando alguém paga a propina que lhe exigem, considera-se vítima, mas quando olha para um político que fez favores em troca de um favor maior, chama-lhe corrupto.

Quando os brasileiros – com alguma razão, que não toda – acusam o PT de corrupção, esquecem-se de perguntar: quem os corrompeu? Aceitam um palpite? Os mesmos que agora pagaram as mensagens massivas do WhatsApp contendo calúnias e que irão corromper o governo que toma posse em Janeiro. Como o Congresso torna impossível constituir maiorias de governação, terão de se comprar votos. Foi sempre assim, vai continuar a ser assim.

Dir-me-ão, o «Salvador» vai fechar o Congresso, ele prometeu que era a primeira coisa que fazia após a tomada de posse. É bem possível. Quem vai deliberar então? As Assembleias de Deus (que eu chamaria do Diabo)? A IURDE? A rua, com os seus 30% de evangélicos?

Como se vai debelar o crime? À bala? Quem dispara, vizinho contra vizinho ou a polícia em roda livre?

Sem de uma pessoa que visitou o Brasil várias vezes e a única vez que foi assaltada foi-o pela polícia.

Quando uma sociedade está doente a razão fica sem espaço. Quando alguém tem uma dor de dentes faz tudo para se livrar dela. Se lhe disserem para beber lixívia, bebe lixívia.

O problema do Brasil não é político, é cultural e comportamental. Podem mudar de políticos que os problemas permanecerão. Quando deram ao Lula mais votos ainda do que deram agora ao Bolsonaro era porque queriam mudança, acabar com a corrupção. A desculpa agora é a mesma. O resultado só não será o mesmo porque terá acrescentos de sangue e medo. Quando não se trata uma ferida, tratável facilmente com Betadine, pode resultar uma chaga cancerosa.

Combater a violência com violência é acrescentar violência à violência.

Liberalizar as armas?

Não precisamos ser bruxos. Ou precisamos?

De consequências há muito quem saiba, de causas nem por isso. Violência dá olho por olho, e como dizia Gandhi, olho por olho acabamos todos cegos.

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

O DESENGOLIR DO MORTO-VIVO

Um certo morto-vivo, que demasiados portugueses ainda conhecem, a conselho do seu médico legista, perdão, de família, com a intenção de combater o seu Alzheimer, publicou mais um inútil desmemorial da tumba.

No volume anterior, como sabem, com os seus dentes de verdete mordia no seu sucessor como quem, meio engasgado, trinca bolo-rei; neste, expele veneno como se já não tivesse dentes.

De língua bifurcada, e como se estivesse possuído pelo espírito linguarudo da inefável Vera Lagoa, chama memórias à desmemória feita de fofocas, provando à saciedade que mais não pode, mesmo que quisesse. É o seu modo selectivo e perverso de descarregar, sobre inimigos de estimação, as suas frustrações acumuladas, que são muitas, exprimir o seu despeito, que é enorme e o seu espírito mesquinho, que é gigantesco.

Sem perda de tempo, a televisão balsâmica, sempre prestável para com os seus, mesmo que fora de prazo, mesmo que mumificados, levou à pantalha duas branqueadoras. Que aquilo era muito saxónico, o morto-vivo até tinha estudado na Britânia, que nós é que não estávamos habituados, que aquilo faz muita falta e é perfeitamente legítimo. Tadinhas, tão ingénuas, até faz aflição. Claro que é legítimo, se o não fosse a Procuradoria já estava a mandar o assunto para o Correio da Manha. Também é legítimo cuspir na sopa, mas causa asco, não causa? Que faz falta!? É possível. O estrume também faz falta no canteiro das flores, mas não na prateleira dos livros.

Juízos de carácter e revelação de conversas privadas (susceptíveis até de ser desmentidas) não são coisas saxónicas, são coisas apenas deselegantes e venenosas, que denunciam à saciedade a total ausência de sentido de estado, o que já não causa espanto a ninguém.

O homem ainda não percebeu que o povo português o despreza profundamente. E porquê? Porque muito portuguesmente (e não saxonicamente) lhe detesta o carácter. Esteve casado com ele e nem acredita que o esteve.

A propósito, Sr. Ressabiado, ainda se lembra (ou o Alzheimer não permite) do que fez ao Saramago, do que fez ao Salgueiro Maia?

E outra coisa: ainda tem aquele grupinho de amigos que a gente sabe?

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

A PROPÓSITO DO PARAISO

Sempre perspicazes e muito pertinentes, os textos do nosso confrade José Flórido são – é a mais evidente das qualidades – um apelo à inteligência, o que contraria a lógica facebookista, que anda mais pela superficialidade (no seu aspecto menos doentio) e pelo confronto e pelas fake (na sua tendência).

Falava o nosso amigo no entendimento do dever ser do Paraíso, em Agostinho da Silva e quanto é difícil de entender isto nos dias que correm. Mais difícil ainda se olharmos o que se passa no Brasil, de que o nosso Mahatma foi também nacional. O ódio que ali grassa, sobretudo em grupos populacionais que se reivindicam do cristianismo, faz-nos perder toda a perspectiva de que ali sejam possíveis o bom-senso e a coesão social. O Brasil, que tem as condições naturais para ser o paraíso possível a que a exacerbação dos ódios se opõe!

Entendamos o Paraíso como a Jerusalém Terrestre e suponhamos que fica em Freixo de Espada à Cinta. É ali que podemos fundar a liberdade e o destino como uma coisa só. Pois bem, queremos lá chegar partindo da Cova da Moura. Podemos ir ao pé coxinho, em marcha, devagarinho, em maratona e até de marcha atrás, de preferência pelo trajecto mais curto. Dispensemos, por agora, os artifícios de meios mecânicos de locomoção…

Os bem-avisados munem-se de farnel, roupas adequadas, sapatos confortáveis e metem-se ao caminho. Alguns, os mais entusiastas, entoam cânticos e tocam bandolins. Vão caminhando debaixo de impropérios, alguns desistem e são a maioria.

Os que se julgam mais avisados que os mais, têm para si que o segredo é a alma do negócio e murmuram para com os seus botões: se queres chegar depressa vai sozinho, que acompanhado nunca mais lá chegas.

Mas vêm logo os que adoram o mando e a chibata e dizem aos que caminham: vá, todos de rastos, que é preciso sofrer para alcançar o Paraíso. Se algum levanta a cabeça de imediato o chicote lhe fere o lombo.

Há ainda os disparatados, os alucinados e os vendedores de incensos espiritualíssimos, cristais mágicos e milagres fáceis. Dizem que o caminho mais curto entre dois pontos é a linha curva e convencem os que vivem de se convencerem a irem pelo Sul, darem a volta ao Globo e conquistarem o Paraiso.

Estive a semana passada em Freixo de Espada à Cinta e, enquanto ali permaneci, não vi ninguém chegar. Perguntei aos locais se alguém de fora ali chegara e disseram-me que só as andorinhas, no início da Primavera.

AINDA A PROPÓSITO DO PARAISO

No viver social, tudo se confina ao destino e à liberdade, que são duas coisas que mutuamente se condicionam; a predominância de uma é a atrofia da outra. A desgraça social vem invariavelmente da submissão do destino de muitos à liberdade de poucos, mas nunca o abuso da liberdade dos poucos sobre os muitos é o mal, este é filho do medo e da rendição das maiorias.

Tudo o que existe de mal no mundo não é culpa dos maus, como muita gente diz, é culpa dos bons, que não fazem o suficiente para o debelar.

Por exemplo, quando a guerra entre o Brasil e a Venezuela se iniciar, os brasileiros não terão nenhuma razão para culpar o Bolsonaro; ele não veio de marte, é o reflexo, é a invocação, é o sentir de uma maioria socialmente doente, é o resultado de uma esquizofrenia colectiva.

É evidente que eu estou a partir do princípio que o Messias do Mal vai ser Presidente do Brasil, embora não seja absolutamente certo que assim seja. Sê-lo-á se o destino prevalecer sobre a liberdade. Então, como presidirá a um país completamente ingovernável, dominado por ódios irredutíveis e cegueira religiosa medieval – e a política é também religiosa – vai ter de continuar a apelar aos eleitores para que lhe dêem carta banca e terá de fazer o que se faz sempre nestas condições: arranjar um forte inimigo externo para catalisar o nacionalismo popular. Quem está mais à mão: a Venezuela. Por outro lado, Maduro também procura afanosamente um inimigo externo para unir as massas e levar pela arreata o exército, antes que este o apeie.

As condições estão reunidas e os dados estão lançados. Os dois Maduros – o do Brasil e o da Venezuela, o de esquerda e o de direita – têm a solução. Salvas as devidas proporções, também foi assim com Hitler e Estaline.

Sejamos optimistas: o número de mortos não será tão grande, grande será o número de arrependidos. Mas, por favor, não peçam desculpa, que as desculpas não se pedem, evitam-se.

domingo, 16 de setembro de 2018

MUITA ALDRABICE, POUCA REFLEXÃO E AUSÊNCIA DE ESPÍIRITO CRÍTICO.

Convenhamos que as pechas da epígrafe não nasceram com o Facebook, este apenas torna isso tudo muito mais comum e difundido, não só pelas características da cibernética, mas porque a distância, o não se dizer olhos nos olhos nos dá a sensação de poder e de irresponsabilidade.

Todos somos mentirosos por natureza, crentes por condicionamento e pequenos ditadores por costume e vocação.

Não é forçoso que assim sejamos sempre e para sempre, é uma questão de opções e de vontade. Desenvolver o espírito crítico é certamente um bom caminho para desejarmos cultivar a verdade. Quando andamos por aqui a partilhar calúnias, mentiras e tretas é evidente que não vamos por este caminho de que falo.

As tretas que partilhamos, fazemo-lo as mais das vezes por darmos crédito ao que não devíamos ou por uma irresistível vontade de acreditar, e a vontade de acreditar é um enorme obstáculo à vontade de saber. Não fazer qualquer esforço para confirmar ou infirmar a veracidade do que nos chega, partilhando sem mais fum funs nem gaitinhas é, no mínimo, falta de respeito pelos outros, que afinal até chamamos amigos. Seremos todos, afinal, amigos de Peniche?

A maior parte do que se partilha na NET como se fora informação não é informação, é o que está na moda, Fake News. E as fakenews são de uma perversidade enorme, correspondem ao que o António Aleixo dizia numa sua célebre quadra:

«Para a mentira ser segura

e atingir profundidade

tem de trazer à mistura

qualquer coisa de verdade.»

É por esta qualquer coisa que alguns «partilheiros» se desculpam, quando apanhados em falta, dizendo: bem, pode ser mentira, mas o conteúdo é muito bonito, muito assertivo. Esta lógica, levado ao extremo, levar-nos-ia a beber chá num penico roto e a dizer aos outros: se não gosta, não beba.

A vontade de acreditar e o culto da mentira estão por detrás de um negócio muito lucrativo. Lembram-se daquele jovem – búlgaro, se bem me lembro – que inventou a história de que o Papa apoiava o Trump? Pois, em pouco mais de 15 dias ganhou o equivalente a 10 salários mínimos em Portugal. É disto que vivem sites como o ZAP, o semprequestione e uma dúzia mais do mesmo jaez. Podia perguntar-se: então por que é que escrevem mentiras, se dava o mesmo trabalho escreverem verdades?

A resposta é muito simples: as verdades não são excitantes e não são lucrativas porque não são partilhadas, ou são-no apenas residualmente. A publicarem verdades, os internautas desses sites não ganhavam sequer para os manter a eles e aos sites. É na partilha que está o ganho e todos sabemos quão bom é ganhar pilim sem fazer força.

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

DA HIGIENE MUNDANAL MÍNIMA

Não havendo, apesar dos esforços da castração globalizante, que de tudo quer fazer tábua rasa, dois homens (ou mulheres) iguais, , não consigo imaginar o que seja o cidadão ideal do século XXI. Além do mais, tenho imensa dificuldade em aceitar estereótipos. Por exemplo, quando me dizem que os Beirões são muito teimosos, respondo habitualmente que há os que são e os que não são.

Digo estas coisas porquê? Porque quero comunicar com o mundo? Não! Quero apenas comunicar comigo, única pessoa com quem vivo, desde que me conheço, 24 horas por dia. Penso que é uma perda de tempo tentar comunicar com o mundo; o mundo é que deve comunicar connosco, se o não faz é porque lhe não fazemos falta, é sinal de que o mundo está rico – ainda bem para o mundo – e nós somos excedentários. Ainda mal para nós.

Se sentimos muita falta, se nos sentirmos incomodados por não sabermos, não podermos ou não nos deixarem comunicar com o mundo, então alguma coisa está mal connosco e em nós, não necessariamente com o mundo (ou no mundo).

O facto de estarmos no mundo não torna obrigatório que lhe pertençamos, apenas nos deve predispor a imaginar o que queremos para o mundo. Ora, como o significado etimológico de mundo é LIMPO, antónimo de imundo, a nossa obrigação é, antes de mais, limpar o que sujamos, depois, limpar também à nossa porta o que os outros sujem e não queiram limpar.

De harmonia com esta óptica, o remédio para repor a ordem anterior à queda do tabuleiro de xadrez e ao esparramar de peões, cavalos e bispos é precisamente apanhar o tabuleiro e colocar as peças nos seus lugares.

Quem o deve fazer?

Deve fazê-lo aquele que mais deseje que o mundo seja um lugar limpo.

Aqui há uns bons anos, costumava eu usar quotidianamente a travessia do Tejo entre Barreiro e Lisboa. Em uma dessas viagens, vinha de conversa com um velho amigo que estivera na guerra comigo, quando ambos nos apercebemos que um outro passageiro rasgava um papel em pequenos pedaços, deitando-os para o chão. O meu amigo levantou-se e foi apanhar os pedaços um a um e, enquanto os metia no bolso, perguntava ao prevaricador: não lhe fazem falta, pois não?

Nessa ocasião, o barco ficou mais limpo e o mundo mereceu o nome que lhe coube. Apenas envergonhado, o rasgador de papéis afastou-se de mansinho.

ABDUL CADRE

sábado, 11 de agosto de 2018

PROPENSÕES

Por que motivo é tão grande a propensão para a injúria, a mentira e a calúnia, nas redes sociais?

Tenho referido bastas vezes que a razão reside na falsa valentia de uma manifesta cobardia a salvo de agressão física por parte dos ofendidos, e a convicção de que as mesmas não recorrem à polícia. É uma evidência que o agressor se julga protegido por um escudo invisível.

Bom, isto pode explicar a desarvorada acção, não explica a motivação. Ora, a motivação não advém da cibernética, é anterior, é tão antiga quanto o homem, é uma componente da personalidade, que se torna preponderante em indivíduos que cresceram sujeitos a tratamentos injustos e desumanos; indivíduos que se tornaram incapazes de gerir as suas contrariedades e frustrações; em indivíduos com complexos de culpa, incapazes de se perdoarem e, por maioria de razão, perdoarem os outros.

Não se trata de bons e maus, mas de comportamentos que nos agradam e comportamentos que nos desagradam, o anjo e o demónio que a todos habita: desenvolveremos mais aquele que melhor cultivarmos.

Muitas vezes não se quer entender assim, fruto da nossa cultura judaico-cristã, que para além da hipocrisia, sua mais relevante característica, nos gravou a fogo no modo de ser o princípio do bode expiatório e o consequente entendimento de que o mal são os outros.

Uma revisitação à Experiência de Milgram pode ajudar-nos a perceber quão inadequada é a nossa visão daquilo que humana e socialmente somos.

Os meus amigos já alguma vez se perguntara, da natureza do conceito de devermos tratar os outros da forma que gostaríamos de ser tratados?

Hoje em dia pouco referimos isto, não é? É algo que nos parece adquirido, algo de civilizacional, mas, reflectindo bem, talvez não seja assim tão líquido, poderá até estar em regressão, a avaliar pelas redes sociais…

Sabem? É que o conceito nasceu em um tempo em que todos maltratavam todos, e agora nem por isso, por enquanto.

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

PSICOFILOSOFIA DO CHICO ESPERTO

Descobrir a pólvora é o objecto máximo de qualquer chico esperto, porque outro objectivo não pode ter.

Quando me falam do Aborto Ortográfico penso sempre em provincianismo, vaidosos em bicos dos pés, chapéu de coco no enterro do bacalhau… penso coisas ainda piores, mas não digo.

Dos arautos da coisa, lembro-me sempre de argumentarem que ninguém é dono da língua portuguesa. Ou seja, entende-se que seja res nullius, coisa sem importância e, como tal, susceptível de ser apropriada por qualquer que tenha jeito e força para usucapir. Foi isso que foi feito de forma indecente e perversa por meia-dúzia de iluminados, donos assim, por usucapião daquilo que pertence afinal e apenas aos seus usuários, que não foram ouvidos para o efeito. Borrifaram-se nas Academias e nas Universidades, marimbaram-se para os escritores, olharam para os seus umbigos e disseram: tão lindos! Gente que devia ter sido internada naquele jeitoso hospital da Avenida do Brasil

Gente equivocada, não apenas por ser louca, mas por usar chapéu de coco. As línguas são pertença dos seus criadores e cada povo usá-las-á como lhes aprouver. Por isso, adoptarão os brasileiros a ortografia que lhes der jeito e os angolanos, moçambicanos, guineenses, cabo-verdianos, timorenses também. Cada um com a sua e nós com a nossa.

Foi isto que pensaram os falantes de inglês, francês, espanhol e alemão. Vejam bem, até os alemães. Mas claro, aquilo é gente estúpida, que inteligentes foram os iluminados do Brasil e dos esconsos do Portugal dos Pequeninos.

Não dá muito trabalho verificar as variantes ortográficas das principais línguas europeias, basta, tendo o Word, procurar os dicionários correctores. A propósito: sabem, com certeza, que corretor (do provençal corretier, que quer dizer intermediário) e corrector (do latim corrector, que quer dizer censor, aquele que corrige) são coisas bem diferentes, não sabem? Pois, os iluminados não sabem. Como não sabem que óptico e ótico são coisas também diferentes. Mas adiante.

Em inglês, temos 17 variantes ortográficas (ou 18, se considerarmos o quase inglês de Hong Kong); em espanhol (diga-se castelhano), temos 23, com a curiosidade de que na própria Espanha há duas variantes: a geral e a ordenação tradicional; em francês temos 15 e em Alemão temos 4.

O Aborto ortográfico é uma desnecessidade, mas não deixa também de ser um cancro. E é ilegal, porque não existe em termos de acordo internacional. A Assembleia da República não tinha poder para impor um acordo que não existia. Poucos deputados se opuseram. Penso que todos os outros usam chapéu de coco e nunca faltam ao enterro do bacalhau.

sexta-feira, 29 de junho de 2018

A HISTÓRIA DO MEALHEIRO

Como diz qualquer pantomineiro virado ao sabichola, foi na Grécia antiga que nasceu a coisa mais linda de andar ao colo: a democracia.

Ora, um belo dia, o filósofo sapientíssimo Papadopulos – e desculpem se vai mal escrito, que eu com estas ortografias vejo-me grego – caminhava em Atenas com uma ideia fixa. Levava um saco de dinheiro, dirigiu-se a um tabelião e disse:

– Quero comprar aquela terra assim-assim.

– Ó Papadopulos, estás equivocado, tu não podes comprar terras, só o teu dono o pode fazer…

Expliquemo-nos: o filósofo era escravo. Mas atenção, era muito bem tratado, o dono achava-lhe piada, gostava de o ouvir a dizer aquelas coisas extravagantes, vestia-o com roupas vistosas, deixava-o andar de passeio e até lhe dava uns trocados, que ele, poupadinho, não gastava.

Como é evidente, naquele tempo, era melhor ser um escravo palrador do que laborador.

O tabelião era uma pessoa muito paciente e gostava de ensinar coisas práticas, que os filósofos não entendiam bem. Todavia, que fique claro, Papadopulos orgulhava-se de pregar as virtudes da democracia por todas as ruas de Atenas e por todas as casas senhoriais. Mas, o tabelião era um homem muito pragmático, e por isso dizia:

– Ó Papadopulos, um escravo é uma coisa, e uma coisa não compra coisas. A única coisa que pode ter coisas é o mealheiro.

sexta-feira, 30 de março de 2018

DESUMANIDADES

Quer a engenharia genética, quer o nuclear de guerra erguem bandeiras em nome do bem. A primeira quer aperfeiçoar o homem, superando a natureza; o segundo quer exterminar os feios, porcos e maus, segundo os critérios restritos da violência total e poder do mando, da escolha e da segregação.

O que é comum a estas duas negações da inteligência é a grande perversão do lema não declarado: purificar é preciso, viver não é preciso.

Espreitando a História, pode dizer-se: Homero não serve, por ser cego, Jesus também não, por ser vesgo, Dostoievski muito menos, por epilepsia.

Pensar a ciência colocando uma esperança salvífica no laboratório da genética, na lógica do milagre que esperámos malogradamente da religião, talvez não seja um caminho de perfeição para o homem, porque daí talvez não seja homem aquilo que resulte; chamar de impuro o que é diferente, o que nos incomoda, o que tememos, o que odiamos e em vez de integrar e entender querer segregar, querer exterminar, não torna a humanidade melhor, empobrece-a, não nos dá segurança, porque a insegurança nasce do medo e o medo justifica-se por si mesmo, faz parte da nossa condição, é um limite à nossa própria inteligência.

Se o medo é muito, a inteligência não é nenhuma.

quinta-feira, 22 de março de 2018

DO LADO DE QUEM SAI, OU DO LADO DE QUEM ENTRA?

Neste treinamento neurónico, constituinte da almofada de penas de aconchegar consciências, neste conjurar de preces para que os militares, em vez de militarices se dediquem à política, substituindo corruptos à civil por corruptos fardados, mas armados até aos dentes, os brasileiros discutem emotivamente, dada a falta de espaço para a razão, coisas de esquerda e de direita, sem que digam se vêem a coisa do lado de quem sai ou do lado de quem entra.

Não se iludam, porque a factura da ilusão é sempre a desilusão. E creiam: o Pai Natal não existe, e os gambozinos também não.

A desonestidade não tem cor.

Quem faz o ladrão é a ocasião.

Se as instituições não têm os mecanismos preventivos adequados e suficientes, o roubo torna-se inevitável. Nos países onde cortam mãos, os ladrões vêem-se obrigados a roubar com os pés. O grande problema, nos países ditos democráticos, é que o povo chama ladrão aos ladrões de quem não gosta para ir a correr votar nos ladrões que ama.

O pecado dos vociferantes é que não vociferam contra o roubo, não se escandalizam com o rouba, vociferam contra quem rouba e contra quem imaginam que rouba, mesmo que o não faça.

Há aqui uma grande componente de inveja, não há?

Nos países sufragistas, a corrupção nas altas esferas do estado não pode acabar enquanto os eleitores votarem por identificação.

Leiam os textos políticos de Fernando Pessoa. Está lá tudo.

domingo, 11 de março de 2018

CURSO, DECURSO, RECURSO, PERCURSO E DE TUDO ISTO O DISCURSO.

Engraçado, em castelhano, a palavra recorrer quer dizer coisa bem diferente do que parece, significa percorrer.

Na juventude, escrevi uma espécie de poema que não queria significar coisa nenhuma e dizia mais ou menos o seguinte: «Na osmose pose do meu corpo barro, quando ex-barro me esbarro e em desespero espero…» etc. e tal, que já não me lembro bem.

Isto para dizer que para além do cuidado com coisas de importação, seja de palavras vindas da estranja, seja de outros contextos, haverá que ter um cuidado redobrado com o que à literatura, e em especial ao discurso poético se exige: a assunção de uma metalinguagem, que cabe apenas à literatura e se tem de negar, como é óbvio, à prosa de serviço, aos manuais.

O jovem Luís Coelho remeteu o aforismo abaixo, que partilhei na minha rede do FB:

«A melhor maneira de perder o curso da Vida: fazer um curso académico».

Ora, isto mereceu crítica viva, em especial da nossa querida amiga RS, que, salvo melhor opinião tresleu a frase.

Vamos lá ver algumas nuanças e dimensões da mesma. Comecemos por notar a letra maiúscula de Vida, que nos leva a uma primeira leitura: a vida académica não é verdadeiramente vida, mas as mais das vezes o seu contrário. Junte-se a isto a divisa dos argonautas, tão cara a Fernando Pessoa: «navegar é preciso, viver não é preciso». Se virmos navegar no sentido de cursar, como o cursar académico, o aforismo do Luís justifica-se em linguagem linearmente lógica e o que ele diz torna-se uma verdade insofismável: o curso académico diz à vida que ela não é precisa. É claro que nós preferíamos dizer que viver é preciso, desfolhar sebentas não é preciso.

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Cabe dizer-se que eu aprendi em pormenor a aplicação do direito entre os romanos, sendo uma pena não haver romanos a quem eu possa aplicar esse meu academismo.

O irmão do meu saudoso amigo António Telmo, o professor Orlando Vitorino, um dos últimos representantes da "Filosofia Portuguesa", chamado um dia a pronunciar-se sobre o ensino, disse mais ou menos isto, que eu não estava lá para ouvir: «Ó Sr. Ministro, se quer fazer alguma coisa de útil pelo ensino, feche todas as escolas, a começar pelas universidades».

Estes seus dizeres não eram novidade, no prefácio que fez a Ensaio Sobre a Liberdade, de Stuart Mill, publicado pela Arcádia, em 1973, diz sobre a universidade:

«… deveria ser extinta porque era «herdeira de todas as limitações ao desenvolvimento intelectual e de todas as proibições de informação cultural e científica ancestralmente atribuídas a organizações que, no progresso de actualização, as vieram abjurando, como as do ensino e da censura eclesiásticos».

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Quando o Professor Agostinho da Silva admoestava quem lhe falava em pedagogia e em pedagogos, logo tratava de dizer que pedagogo era o escravo que, na Grécia Antiga, impedia o menino de ter tempo livre, ou seja, tornava-o mais parecido consigo próprio.

E que tal lembrar aquela canção dos Pink Floyd, Like a brick in the Wall?

Perde-se o curso da vida quando se vai de percurso pela academia, discorrendo sobre o que foi e já não é. Quem vai pela academia tem todo o direito de ir e gritar bem alto: desfolhar é preciso, viver não é preciso. Terá até razão, se disser o curso da minha vida é o curso da minha academia; a minha vida é a corrente académica.

Penso que o grande qui pro quo da leitura da nossa querida amiga RS é estar a confundir a palavra curso, que deveria ser entendida como fluir, que é o que faz a vida, fazem os rios e fazem os ventos, com o que mais correntemente se usa, o que inevitavelmente conduz a entender-se conquista de um grau académico, coisa que até pode bem ser um atraso de vida.

PALAVRAS NECESSÁRIAS/PALAVRAS DESNECESSÁRIAS

Há muitos anos, campeava na rádio um erudito da língua portuguesa que a entendia estática, imutável, esclerosada. Dava pelo nome de Vasco Botelho do Amaral, precedido de professor. Nada a opor ao seu estatuto de professor nem a sua qualidade de erudito da nossa língua. Sem dúvida que lhe assentava bem. Aliás, foi fundador da Sociedade de Língua Portuguesa e o seu Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas da Língua Portuguesa é ainda uma preciosidade. O problema não está, portanto, no muito e bem que sabia, mas na forma apertada com que esgrimia um certo preciosismo. Recordo-me, por exemplo, de como propunha que substituíssemos a palavra bibelot por pechisbeque, coisa a que os ingratos falantes da nossa língua não ligaram nenhuma, e fizeram muito bem.

Lembro isto porque, se calhar, fazia falta estar vivo e continuar com as suas charlas. Ora vejam, há dias, o Primeiro Ministro, que por sinal não disfarça que o seu forte não é a oralidade, nem o uso preciso e conveniente do nosso vocabulário cuidado, aconselhava as pessoas das áreas sinistradas dos últimos fogos a REALIZAREM não sei o quê. Ainda pensei que se referisse a festas, quermesses e coisas assim, mas não. Usando indevidamente um modismo tosco de armar aos cágados, porque o que está a dar é importar americanismos, ele queria dizer não sua constatar, ter consciência e coisa assim. Esta importação abusiva e desnecessária do inglês, quando temos mais de uma dezena de palavras para significar o que queremos significar, perdia valor com uma simples consulta a um dicionário de português-inglês, onde na entrada constatar obtínhamos precisamente as respostas «to realize», «to notice» e «to see».

Os portuguese com um pouco de instrução têm um desprezo colossal pela nossa língua. Basta ouvir os nossos locutores, basta ver como se permite o crime de alta-traição que é o Aborto Ortográfico, onde não se distingue óptico (que diz respeito aos olhos) de ótico (que diz respeito aos ouvidos), pôr de por, quem espeta facas de quem assiste a espectáculo, etc., etc.

Quem poderia pôr cobro ao dislate seriam os deputados. Mas como? basta ver o que dizem e escrevem para se perceber da sua iliteracia.

Mas os locutores da rádio e da televisão têm outras modas. Por exemplo, usam e abusam dos plebeísmos. É o «fechou-se em copas» a torto e a direito, é empregarem «culpa» e «graças» em completo desalinho, é o «de encher o olho» e até o célebre «debaixo de olho», quando lá no meu bairro se dizia que debaixo de olho está o penico.

A ligeireza com que se trata a língua portuguesa é responsável por muitas incompreensões. Isto dá-se, inclusive, por pessoas letradas, que escrevem nos jornais e escrevem romances. Por exemplo, uma participante num programa semanal da nossa televisão emprega com grande frequência a expressão massa crítica, mas dá-lhe o sentido oposto ao correcto. A expressão vem da Física, foi adoptada pela sociologia e acabou por invadir o linguarejar comum. Acontece é que não significa o que a senhora pensa – um monte de gente a criticar – significa o oposto, um monte de gente a acreditar e a realizar, não no sentido de constatar, mas de fazer.

Por estes dias, uma amiga que pensa e escreve bem, embirrou com um certo aforismo, onde entendeu a palavra curso no sentido restrito de quem anda na escola, e não como o principal, com os principais significados que se registam no dicionário. Ide ver.

A palavra assassino tem similitudes de aproveitamento com a palavra curso, trajectória da água. Antes de se usar a palavra assassino, a palavra devida e em voga era homicida. Parece que assassino só nos chega com Marco Polo, que identificou os guerreiros do Velho da Montanha (Hassan ibn al-Sabbah), em Alamut como fumadores de haxixe, associados depois aos homicídios políticos e tomando a palavra síria Assa (que está no nome de Assad) como raiz de «haxe», quando parece querer dizer fundamentos da fé e/ou guardião. O nome Ḥashāshīn, conforme atribuído por Marco Polo á Ordem dirigida pelo Velho da Montanha, também poderá significar «os seguidores de Hassan». Curiosidades, apenas.

Non Sense

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SÓ A BRINCAR SE PODE SER SÉRIO. PATRÕES, BANDIDOS, POLÍCIAS E PADRES NÃO BRINCAM.

Há um ror de tempo, caíram-me nas mãos dois encantos, que devorei várias vezes de fio a pavio: Os Contos do Gin Tónico e Os Novos Contos do Gin Tónico, do Mário-Henrique Leiria.

Dirão alguns que conheçam, sobretudo se conhecerem mal: brincadeira, coisas de rir, coisas pouco sérias, ausência de estímulo à inteligência e outras coisas comuns aos que sofrem de burocracia cerebral. Eu estou nos antípodas, felizmente, embora possa ser suspeito por muito ter alinhado com o non sense, o surrealismo e o dadaísmo.

Sabem a origem de dadaísmo? Vem de dádá, que é a primeira palavra que os bebés pronunciam, para desespera as mães, que dizem para os rebentos: não é assim, diz papá, diz mamã…

Provavelmente, os que se incomodam e deploram estas correntes sentem-se mais confortáveis com a pseudoliteratura do escrevedor a metro, aquele que faz um sorriso matreiro quando lhe chamam o Dan Brown português, ou aquela senhora descritora de alcova, que não recordo o nome e não acredita em coincidências.

São feitios.

Com tanta coisa de valer a pena, para as quais a vida nos não vai dar o tempo suficiente – não contem sequer com prolongamento – algum critério selectivo seria bem-vindo.

Mas como seleccionar?

Não sei.

sábado, 24 de fevereiro de 2018

CONTROVÉRSIA

Muitos entendem que o mais popular dos poemas atribuídos a Bertolt Brecht (Augsburgo, 10 de Fevereiro de 1898 – Berlim, 14 de Agosto de 1956) não seja na realidade seu, mas escrito pelo pastor protestante alemão Martin Niemöller (1892-1984).

Parece que a responsabilidade de tal atribuição se deve apontar à actriz argentina de origem judaica e apaixonada de Brecht, Cipe Lincovsky (Buenos Aires 1933 - 2015), amiga da viúva de Bertolt Brecht, Helene Weigel (1900, Viena – 1971, Berlín), que recitava o poema com bastante frequência e garantia ser do famoso dramaturgo alemão, que o teria escrito em 1933, em Berlim, no seguimento do triunfo eleitoral de Hitler.

Se cotejarmos o que tem sido publicado como escrito por Niemöller e o atribuído a Brecht podemos constatar que se trata do mesmo poema, embora com grandes diferenças nos versos.

Segundo Harold Marcuse, neto do filósofo Herbert Marcuse, Niemöller apoiou a ascensão do nazismo, vindo depois a opor-se-lhe. Esta oposição valeu-lhe ser internado em Dachau, onde permaneceu entre 1941 e 1945.

O poema de Niemöller foi recitado pela primeira vez, integrado em um seu sermão, na Semana Santa de 1946, em Kaiserlautern (Alemania), que tinha por título «Que teria dito Jesus Cristo?», em referência à apatia do povo alemão perante a crueldade nazista.

Reproduzo o texto de Niemöller:

QUANDO ELES CHEGARAM

por

Martin Niemöller

“Quando os nazis chegaram

à procura dos comunistas, eu fiquei calado,

porque eu não era comunista.

Quando encarceraram os sociais-democratas,

também fiquei calado,

eu não era social-democrata.

Quando vieram à procura dos sindicalistas,

não protestei,

porque eu não era sindicalista.

Quando vieram buscar os judeus,

não soltei sequer uma palavra,

porque eu não era judeu.

Quando finalmente vieram buscar-me,

não havia mais ninguém para protestar.”

Quanto ao texto vulgarmente apresentado como de Brecht, aí vai, na versão que me parece mais plausível. Digo mais plausível porque as versões são inúmeras, quer quando atribuídas a Brecht quer quando atribuídas a Niemöller

INDIFERENÇA

“Primeiro levaram os judeus,

mas não me importou, porque eu não era judeu;

Depois, prenderam os comunistas,

mas como eu não era comunista, tampouco me importou;

Pouco depois, detiveram os operários,

mas eu, que não era operário, não me importei;

Logo de seguida detiveram os estudantes,

mas como eu não era estudante, também não me importei;

Por fim, prenderam os padres,

mas eu, que nem sequer era religioso, não me importei;

Agora que me prendem a mim, já é muito tarde.”

Como dissemos atrás, as versões deste poema são inúmeras. Quanto à autoria, é muita a controvérsia, mas inclino-me para Niemöller, pois só se conhece a versão atribuída a Brecht depois do seu regresso à Alemanha, vindo de Nova Iorque, isto é, depois de 1949. O que diz Cipe Lincovsky faz pouco sentido e falar de 1933 é falar do ano em que ela própria nasceu.

domingo, 4 de fevereiro de 2018

COGITA TUTE

Vendas Novas, 4 FEV 2018

Quando alguém, muito professoralmente, diz a outro: pensa pela tua cabeça, está, sem dar por tal, a dizer a esse outro para pensar do mesmo modo que ele, porque a sentença contém um pressuposto subtil, que a cabeça pensa, coisa insusceptível de prova e, por conseguinte, é do domínio da crença.

O aviso (ou sugestão) menos incorrecto seria «pensa por ti» ou, de forma mais vaidosa, cogita tute, porque o latim dá sempre um toque tipo anel de brasão, mesmo que se viva em república.

criacionista não explica, e um darwinista muito menos, por que os machos têm mamilos, excrescências completamente inúteis. Dirão coisas, mas é como se não dissessem, porque qualquer pensamento, qualquer entendimento condicionado por um modelo fica sempre limitado pelos seus parâmetros. Habitualmente, tentarão encaixar os factos no modelo em que acreditam, mesmo que não caibam.

Michael Shermer, em um dos seus escritos – ele que é um neodarwinista – avisou-nos sabiamente que às más perguntas sucedem sempre más respostas. Segundo ele, a pergunta que se deve fazer é por que as mulheres têm mamilos, sendo a resposta evidente e inegável é que as fêmeas de mamífero têm mamilos para poderem alimentar as crias.

Aquelas excrescências nos machos devem-se ao facto de o molde arquitectónico para cada espécie ser apenas um; a natureza não perde tempo com dois, quando resolve o problema com um. Azar dos machos, que ficam com as marcas do molde.

Podemos enquadrar tudo isto na ideia de que o princípio básico da vida é feminino.