segunda-feira, 21 de outubro de 2019

DO ESSENCIAL E DO SUPÉRFULO

Ainda há muito quem se lembre da escola salazarenga, que punha as crianças, à força da menina de cinco olhos, a debitar de cor as estações dos caminhos de ferro, como se o destino de todos fosse o de ferroviário. Lembrar é bom, para termos a noção daquilo que não deve ser, má é a nostalgia de alguns, que se permitem bolçar azedamente disparates do género: naquele tempo é que se aprendia. Estes saudosistas, se acaso seguiram a profissão de marçanos, estão desculpados. Certamente que lhes foi útil ler, escrever e contar.

Que não se pense, faço ao que digo aqui, que os estragos mentais só atingiram os que gostaram da castração intelectual. Não. O estrago foi geral e as sequelas ainda hoje se fazem sentir no senso comum de encarar os fenómenos do saber e da cultura: o não desenvolvimento do espírito crítico, que leva ao relativismo, a não se distinguir o essencial do supérfluo, o real do ilusório, a crença do saber, a opinião do conhecimento. Agora, com o advento das redes sociais, que eu chamo de anti sociais, a perversão é bem maior, atingimos o ponto de acrescentar à não distinção apontada, a indiferença quanto ao que é verdade e o que é mentira. Chegamos mesmo à extrema aberração de inventarmos conceitos como factos alternativos e convivermos com Fake News, como sendo notícias.

Tudo isto que disse foi no sentido de mostrar ao que nos leva a base enganadora do reino da quantidade que vivemos hoje, mais do que nunca, de confundir o essencial com o acessório. Isto é a raiz do resto.

No livro de que já tenho falado aqui, «Não Contem com o Fim dos Livros», Umberto Eco tem esta apreciação muito inspiradora:

«...Sabemos tudo sobre Calpúrnia, a última mulher de César, até aos Idos de Março, data do assassinato, momento em que ela o desaconselha a ir ao Senado na sequência de um sonho agoirento.

Após a morte de César, não sabemos mais nada dela. Desaparece das nossas memórias. Porquê? Porque já não era útil obter informações sobre ela. E não porque, como se poderia supor, era mulher. Clara Schumann era também mulher, mas sabemos tudo o que fez após a morte de Robert. A cultura é, pois, essa selecção. A cultura contemporânea, pelo contrário, via Internet, inunda-nos de detalhes sobre todas as Calpurnias do planeta, a cada dia, a cada minuto, de tal forma que um rapazinho que faça uma pesquisa para o seu trabalho pode ter a sensação de que Calpúrnia é tão importante quanto César.»

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

O VOLTAIRE DOS DIREITINHAS (OU SERÁ DOS DIREITOLAS?)

Ainda não havia Facebook e já corria nos esterquilínios da NET um texto nauseabundo que o bolçador de aleivosias atribuía a Voltaire – e logo a Voltaire, que tinha um profundo desprezo pelo povo – onde se falava de dois tipos de ladrões, o comum e o político, sendo que o político era escolhido por nós. Ora, no tempo de Voltaire, vivia-se em absolutismo e o povo – a plebe – não era ouvido nem achado em cisas de governação. Aliás, simplesmente não era ouvido, e se tivesse fome que comesse brioches.

Confrontar os espalhadores deste lixo desinformativo, e bastas vezes peçonhento, é receber como resposta que se não disse poda ter dito, porque é muito verdadeiro. Esta gente até fala do verdadeiro, estando a distribuir mentiras.

O truque de dizer não escreveu, mas podia ter escrito é muito facebookista, que o mesmo é dizer pouco aceitável, dado que se eu disser que uma pessoa disse uma coisa que afinal não disse, ela põe-me um processo e de nada me vale dizer que podia ter dito, porque isso levará o juiz a agravar-me a pena.

Eu sei que estamos num tempo que vale tudo até tirar olhos, mas eu nem aos bezugos tenho a coragem de tirar os olhos.

Dizer que aquela coisa mal escrita assentava que nem uma luva no pensamento de Voltaire é desconhecer completamente o que ele pensava e o que não pensava. Por exemplo, não lhe passava pelo bestunto que o povo pudesse votar, Voltaire condenava o Absolutismo, regime que vigorava na França do seu tempo, porém defendia a necessidade de uma Monarquia centralizada em que os reis, assessorados pelos filósofos fossem capazes de fazer reformas de acordo com o interesse da sociedade, que o mesmo é dizer da alta burguesia a que ele pertencia. Voltaire tinha verdadeiro desprezo pelo povo e a sua melhor qualidade era uma língua afiada que lhe valeu ir parar várias vezes à Bastilha e conhecer o exílio. A sua coragem anticlerical era uma imagem de marca inexcedível, até porque ser anticlerical era muito perigoso.

É ler. É ler. E nada de truques, dar o seu a seu dono.

NÃO SE LAPIDA FAZENDO CÓCEGAS

«O povo nunca é humanitário. O que há de mais fundamental na criatura do povo é a atenção estreita aos seus interesses, e a exclusão cuidadosa, praticada sempre que possível, dos interesses alheios».

FERNANDO PESSOA

Livro do Desassossego.

Não fui eu quem disse, foi o Pessoa desassossegado, mas dou nota 17 ou 18. Repetindo-me: o povo é o sítio de onde todos vêm e para onde ninguém quer voltar, tal como ninguém quer voltar ao útero materno. Acontece, todavia, que há homens e mulheres – mais os homens do que as mulheres – que não saem bem paridos e sofrem muito de foto-fobia. Chama-se-lhes, por vezes, imaturos, mas aqui há que ter algum cuidado, porque a fronteira entre o maduro e o podre é muito ténue. De qualquer forma, tal como os pássaros abrem as asas e voam, tal como o Fernão Capelo Gaivota se atreve, a regra de crescer é enfrentar a luz, não o regresso à caverna ou ao útero. Da caverna quem bem sabia era o Platão, do útero todos sabem, mas muitos esquecem sem o benefício da experiência havida.

Quando falamos de povo estamos a abusar do conceito, ao tomar por concreto aquilo que é uma abstracção, porque se trata de olhar a massa sem ver o indivíduo. Por isso, perante aqueles que deificam tal abstracção, eu pergunto tantas vezes: o que é povo, o Pinto Balsemão ou o trolha que espanca a mulher? A Madre Teresa de Calcutá ou o Charles Mason? A velhinha que dá comida aos pombos ou o carteirista dos eléctricos da carreira 28? Os políticos ou os que elegem e os que não elegem os políticos?

O conceito de povo é demasiado equívoco, mas o que mais se vê é muita gente tentando enganar-se a si própria e aos outros, invocando o povo com aquele jeito mimético de quem está na missa a receber a hóstia para se sentir bonzinho e ter desculpa para as maldades que não renega. E não renega porque é autenticamente povo e povo é o lugar de todos os vícios, superá-los é superar a condição de povo.

É no povo que estão as células estaminais, povo-útero onde se gera a placenta que alimenta o feto, que nada impede que chegue à luz como um nado morto. É daqui que se imagina ter de Pessoa saído o verso dos cadáveres adiados que procriam.

Mas o que mais embala o sentir comum é a ilusão, porque nada dói tanto como a lucidez. O lúcido salva-se da desilusão, porque não se ilude, mas está condenado a ver a vida na sua profundidade e crueza.

Não se sabe como é que as pessoas com a boca cheia de povo conseguem ter apetite para o almoço, mas quiçá sejam como uma gata que eu tive, que devorava a placenta logo que acabava de parir.

Bolçam povo com as palavras os políticos que mendigam aprovação; bolçam peçonha, fingindo defender o povo, os parasitas anti-sociais que fazem dos políticos os seus bodes expiatórios para amenizar as suas frustrações, negam aos políticos a condição de terem sido paridos pelo povo; os pendurados no povo têm a si próprios em tão elevada condição que se sentem os seus tribunos, embora inúteis, que no fundo suspeitam ser.

O que é que eu queria que o povo fizesse?

Mas eu não tenho receitas para o povo, nem coisas para dizer que sejam populares. Gostaria que os escravos que são escravos da sua própria condição conseguissem estar acordados pelo menos 10 minutos por dia, embora saiba que é pedir muito. Gostaria que os que conseguiram chegar a um meio despertar não se orgulhassem do umbigo, porque umbigo todos têm e há coisas mais acima, menos feias. Mas se calhar é também pedir muito.

O que eu verdadeiramente gostava, mas não sei nem posso, era chicotear-lhes os olhos, os ouvidos e a língua até que a vida lhes doesse. A vida, não a sobrevida.

Mas nunca me atreveria a despertar quem dorme a sono solto, nunca se sabe do mau feitio dos estremunhados. Se aplicarmos a lei da inércia, quem dorme não quer acordar, quem está acordado não quer dormir. E assim se estabelecem dois mundos inconciliáveis.

Os diamantes são foscos, quando estão adormecidos. Para lhes libertar o brilho é preciso lapidá-los. Não se lapida fazendo cócegas.

SEJAMOS, PELO MENOS, DESAGRADÁVEIS

Perguntam-me: que dar ao povo em lugar da mentira, e eu respondo: nada, ou antes, uma mentira maior, mais aconchegante, sabendo-se que as mentiras não se medem aos palmos.

O povo ama a mentira e odeia a verdade. É por isso que os políticos mentem, se tentarem falar verdade têm de mudar de profissão. A mais apropriada seria a de cangalheiro, dado que os mortos, tanto quanto se sabe, são surdos, mentir ou falar verdade é-lhes indiferente.

Deixemo-nos da comiseraçãozinha barata: o povo não é tadinho, não é puro nem depositário da virtude, é sobretudo depositário do nosso vício e desumanidade, é por isso que o progresso das ideias e dos sentimentos se faz, só pode fazer-se, pela humanização e pela expansão da consciência.

Não existe o homem natural, existe uma construção cultural a que chamamos Homem, construção sempre provisória, sempre inacabada.

Ter "peninha" do povo "tadinho" não é amá-lo, é ser permissivo com o mau gosto, o mau cheiro e o mau comportamento. Inquietá-lo é que seria amá-lo, que é afinal amar a nossa própria auto-realização, mas isso é muito perigoso, o que não significa que nos rendamos, há que ser, pelo menos, desagradáveis.