quinta-feira, 29 de setembro de 2022

APOCRIFIA

 

Certamente que apócrifo, todavia interessante, corre entre budistas um texto que aventa as seguintes regras para uma sã convivência social:

1 Abriste? Fecha.

2 Acendeste? Apaga.

3 Ataste? Desata.

4 Sujaste? Limpa

5 Usas? Cuida

6 Estragaste? Repara

7 Não sabes arranjar? Pede a quem saiba.

8 Queres usar o que não é teu? Pede permissão

9 Emprestaram-te? Devolve

10 Não sabes? Não intervenhas

11 É grátis? Não desperdices

12 Não te chamaram? Não te intrometas

13 Não sabes fazer melhor? Não deprecies

14 Não vais ajudar? Então não perturbes

15 Prometeste? Cumpre

16 Ofendeste? Pede desculpa

17 Não te perguntaram? Não opines

18 Disseste? Assume

terça-feira, 28 de junho de 2022

HOJE É O TEMPO EM QUE TÃO MENTIROSO É O QUE MENTE COMO AQUELE QUE FALA VERDADE


A razão de chamarmos aos dias que correm – e faz todo o sentido chamar – tempos de pós verdade, é porque a verdade do que se afirme ou o compromisso que se tome deixaram de ter qualquer importância. Esta situação criou raízes profundas porque ao mentiroso não se imputa qualquer ónus, antes pelo contrário: o povo acarinha os mentirosos que invoca e segue, não ignorando de modo algum que mentem. Aliás, exige que mintam, precisa que mintam para alimentar as ilusões, que são a sua metadona, de que não se quer o desmame. Este é um tempo em que chamar mentiroso a alguém não implica que o seja, tanto faz, a novilíngua veio para ficar e as palavras deixaram de ter significado próprio, são uma espécie de cuspo que se dá na linha do discurso para que entre bem no buraco da liberdade de expressão que vilmente vamos inventando para protelar a nossa requerida inumação.

NESTE LUGAR INSALUBRE

 

As nossas sociedades doentes não são lugares agradáveis para uma vida saudável, despreocupada e feliz. É por isso que todos somos mais ou menos doentes, na dependência directa da nossa resistência.

Fundámos uma cultura baseada no ter e é do ter que pretendemos retirar toda a felicidade e bem-estar, alienando aquilo que em nós é mais humano. Tornámos a vida uma competição de todos contra todos e substituímos as crenças antigas por crenças novas mais ilusórias ainda do que aquelas. Não nos apercebemos sequer que a própria ilusão é uma doença, uma doença da imaginação.


segunda-feira, 27 de junho de 2022

AFORISMOS E DESAFORISMOS

 V.N. 28 Junho de 2021

Eu sou viciado em aforismos, todavia mais nos meus do que nos de terceiros. Quando cito aforismos de outros é por despeito de não ter sido eu a escrevê-los.
Mas neste mundo das redes anti-sociais cita-se demasiado, por vezes deturpado, outras vezes atribuindo a autores de nomeada coisas que eles não escreveram nem escreveriam. Por exemplo, já tropecei dezenas de vezes no erro comum de atribuir a Voltaire aquela frase desconchavada de «eu não concordo com o que dizes, mas defenderei o teu direito a dizeres isso» – tem várias nuanças a frase, mas a ideia é esta – Voltaire não disse isto nem parecido.
Mas há pior: atribuir a pessoa respeitada uma série de baboseiras tipo new age que a pessoa, pensando precisamente o oposto, nunca diria, .
Andou por aqui, pela milionésima vez, aquela frase atribuída a Heraclito de não podermos banhar-nos duas vezes nas águas do mesmo rio. A frase foi mal citada, provindo com certeza de uma deficiente tradução; não referia as águas do mesmo rio, mas o rio. E Heraclito podia ter dito a frase dessa forma, porque ele não queria referir-se ao rio, mas ao tempo. Era uma metáfora para transmitir a ideia de como o tempo flui. Em outra frase diz assim: «Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio». A ideia é que o tempo flui, não se detém. Usando tropo similar, diz também: «Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos», querendo significa o perene devir. Similarmente, diz também: «Para os que entrarem nos mesmos rios, outras e outras são as águas que por eles correm».
Mas quando nos debruçamos sobre o que disseram ou não disseram filósofos que não estão cá para confirmar ou desmentir as frases popularizadas, é bom que tenhamos em conta que não há grandes pensadores sem dizeres paradoxais. Agostinho da Silva assumiu sem constrangimentos quanto o paradoxo pode ser precioso num «livrinho» – não sei se foi publicado – que primeiro chamou de «Reflexões, Pensamentos e Paradoxos», que depois rectificou para «Pensamentos, Aforismos e Paradoxos».
Ele escreveu no aforismo 14: «Ser ou Nada são os dois nomes que dou ao mesmo alguma coisa ou nenhuma, que não tem nome; à qual pôr um nome é sacrilégio».
Eu respondi-lhe assim: «No acto mágico de matar – e possuir pelo nome é matar – é em nós que a magia resulta, e também naqueles que se nos submetem. Pelo nome todas as mortes são possíveis, e assim mesmo a de Deus. Morte actual e não real.»
Façam leituras. De tudo o que leiam nada aceitem, mas que nada vos seja indiferente, ou perderam o tempo com a leitura. O papel aceita tudo. Quem aceita tudo o que está escrito faz de papel, não de leitor.
Façam o favor de não ser infelizes, ou sejam felizes, se forem suficientemente egoístas e inconscientes.
ABDUL CADRE

sexta-feira, 10 de junho de 2022

FAKES, TONTICES E FALTA DE ATENÇÃO.


É minha convicção que os navegadores das chamadas redes sociais, na sua grande maioria, pecam por desatenção, futilidade e vontade de acreditar no que mais jeito dá. No meio de tudo isto, fica ausente o espírito crítico e prevalece o slogan, as ideias feitas e a resposta formatada. Por exemplo: é frequente aparecer no Facebook um post em que, a acompanhar uma foto duma artista de filmes porno (Mia Khalifa) se coloca uma legenda com mais ou menos estes dizeres: «Fulana, aluna do Liceu de Freixo de Espada à Cinta, ganhou as Olimpíadas Mundiais de Matemática e os media nada disseram. Se fosse um futebolista não faltariam os elogios, mas como é uma jovem estudante, ainda por cima da província...».


Isto aparece há vários anos, mais do que uma vez por ano, e não adianta denunciar, é uma febre incurável e recorrente. As partilhas somam-se por muitos milhares. Ninguém duvida daquela idiotice nem repara na mais do que suspeita figura retrata, insuficientemente jovem para andar no liceu, de formas sensuais exuberantes. Ninguém se dá ao trabalho de ir constatar que não existem Olimpíadas de Matemática e que o instituto invariavelmente apontado como organizador não existe. Mas dos comentários, a tónica geral é a da conveniência de atacar o futebol para armar ao pingarelho, reflexo condicionado da formatação recebida. Que hipócritas!

Ora bem: os benfiquistas são 6 milhões (dizem eles), os portistas 3 milhões (dizem eles), os sportinguistas 2 milhões (dizem eles) e esta massa, a totalidade do povo português, para que os referidos clubes não joguem apenas entre eles, apoia uma série de clubes figurantes. Conclusão: os comentários a condenar o futebol são tão falsos quanto o post que vimos referindo. Não sei se repararam, mas estes dichotes acerca dos milhões de adeptos procuram ser irónicos. Eu sei, eu sei que os assanhados do comentário levam tuto à letra e só lêem pela rama, mas paciência.

Por estes dias, depois de já termos visto esta coisa dezenas de vezes, anda a circular nas redes aquela foto esmaecida, para armar ao antigo, colocada agora por um tal Primoz Gosak, com a legenda: «Por favor, ajudem! Encontrei esta foto no chão em frente ao Lidl. Na página de trás diz: "Mãe e pai, 1955". Adoraria devolvê-lo ao seu dono, parece uma foto preciosa. Por favor compartilhem para que possamos encontrar o dono! Obrigado

Interessante é que o original deste tal Primoz Gosak – e vá lá saber-se por que corre em português – está escrito em sérvio e não diz exactamente o que anda a circular. Em sérvio diz: «Prosim pomagajte! Tole sliko sem našel na tleh pred Lidlom. Na zadnji strani piše, " Mami in oči, 1955". Z veseljem bi jo vrnil lastniku, izgleda kot stara in dragocena fotografija. Prosim delite da najdemo lastnika! Hvala.» O Google diz que este arrazoado se traduz assim: «Por favor ajude! A força aérea não está lá. Na parte de trás está escrito "Mamãe e papai, 1955". Para onde quer que você olhe, há uma bela sessão de fotos de arrastar e soltar. Vamos dar um passeio! Obrigado.».

Já viram o despautério?

Mas adiante. Na tal foto esmaecida estão os actores Crispin Glover e Lea Thomson, que na trilogia de ficção científica dos anos 80, Regresso ao Futuro, representavam os papéis de pai e mãe do herói Marty MacFly.

 

Já falámos bastas vezes de uma outra doença facebookista, que é, digamos, o citacionismo – esta inventei agora e não deve confundir-se com situacionismo, que este é o lugar onde o citacionismo acontece, a mania das citações, que até poderiam ser interessantes, se fossem verdadeiras. Einstein, Tesla, Pessoa – eu sei lá! – já disseram tudo e o seu contrário, mesmo sem terem dito.

Há uma frase habitual no citacionsimo muito querida das hostes pseudo-ecológicas que vem sendo atribuída a um chefe índio qualquer, que reza assim: «Quando a última árvore for cortada, quando morrer o último peixe, quando o último rio acabar contaminado, todos verão que o dinheiro não se come». Quem o disse e escreveu foi Alanis Obomsawin, cineasta, pintora e escritora canadiana nascida nos USA

domingo, 22 de maio de 2022

UM ESCONJURO DA 25ª HORA

 UM ESCONJURO DA 25ª HORA

Nós somos os filhos bem-nascidos e bem perfilhados de uma cultura belicista. Antes de mais, porque a guerra sempre foi um excelente negócio e a violência a mais usada apologia da virilidade. São de violentos, em quase toda a parte, as estátuas mais imponentes que enfeitam as grandes praças das grandes cidades. Os pombos, na sua bendita filosofia, dão-lhes o tratamento adequado. As mães, não. As mães, na sua missão de perpetuar os nossos vícios, dizem aos meninos: aquele é que é o tal herói.

Em muitas ocasiões do nosso conturbado percurso histórico se deu razão à sentença «se queres a paz, prepara a guerra», mas nos nossos dias foi-se mais longe: fazem-se guerras ditas preventivas, agravadas pela iniquidade e pela cobardia de serem assimétricas. O preceito, se levado até às últimas consequências, implicará a guerra total de quem se entenda mais forte contra todos aqueles que, sendo fracos, se presuma que possam a qualquer momento se tornar perigosos, o que, em tese, não contempla excepções, porque é uma evidência que todos – indivíduos e nações – somos perigosos. Sempre fomos perigosos. Acresce que a guerra comporta em si o saque, nas suas diferentes nuanças, o que a torna um grande negócio. Foi assim no passado e é hoje mais do que nunca.

Para se fazer a guerra, um pouco de loucura agressiva ajuda muito, mas não é suficiente, porque as guerras fazem-se sempre com vista à rapina e à conquista, coisas demasiado normais no cadastro humano. Precedendo-as e preparando-as é sempre bom arranjar um leque de justificações (necessariamente enviesadas) e apelos moralizadores. Mas sendo hoje o tempo dos pequenos homens, bastam toscas mentiras para arrastar a corte reverberal que nos há-de martelar o bichinho do ouvido até à surdez. Depois, seguem-se os decretos como água benta de limpar todo o pecado e bulas de cocaína para nos adormecer.

Mas, no estágio actual do mundo, e considerando os meios destrutivos que desenvolvemos, se a guerra for levada até às últimas consequências nenhuma nação beneficiará em definitivo dos seus réditos, nenhum indivíduo terminará vitorioso, todos sairemos derrotados: extinguir-nos-emos. Então, conviria tratarmos de ser inteligentes e convencermo-nos que estamos condenados, mesmo que a condenação não seja pelos melhores motivos, a implementar uma cultura de paz e integração do outro e da diferença. Aqui, talvez o nosso medo e a nossa muita cobardia possam tornar-se inesperadas virtudes. Mas se prevalecer a irracionalidade das “virtudes” guerreiras: agressividade, violência, cupidez, desumanidade, talvez estejamos em vésperas de acontecimentos de que nenhum cronista falará, 

sexta-feira, 20 de maio de 2022

DEMOCRACIA OU SUFRAGISMO?

 

Chamamos democracia a um sistema político que tem por base um sufrágio universal e que teoricamente seria o governo do povo, pelo povo e para o povo. Certamente que, de uma forma geral, nos países isentos de chapelada, o sufrágio funciona. É um facto, mesmo que corroído pelos sindicatos de voto e prejudicado pelas manipulações mediáticas. Mas será que a base do sistema justifica o sistema?

Quando se fala disto, logo os que não gostam que se fale disto nos vêm com o Churchill a dizer que "a democracia é o pior dos regimes, à excepção de todos os outros", frase tonta, dita certamente ao fim da tarde, por entre os vapores que ficaram da garrafa de whisky já despejada.

 Note-se que eu me estou a referir a democracia, pura e simplesmente, não a democracias, nem a democracia com qualificativo, como popular, directa, etc.

A democracia, como em uso nos chamados países ocidentais, apelidada muitas vezes de liberal, tem o seu pecado original no apelo ao umbigo e no desprezo pela solidariedade. É essencialmente uma ideologia das classes médias bem-pensantes, muito distante agora da velha consigna LibertéEgalitéFraternité, ideal que não perdeu a validade, antes se impõe, mais do que nunca, apesar do adormecimento que o frenesim liberal provoca nos desejos de segurança e da rendição perante o darwinismo social. Há quem chame a atenção para a dificuldade de conciliação entre liberdade e igualdade, mas a principal dicotomia não é esta, é entre segurança e liberdade, e temos a experiência histórica de quão mal correu a implantação do chamado socialismo real, onde em nome da segurança se perdeu a liberdade e a perda desta teve como consequência a inaplicabilidade da outra.

De qualquer forma, face ao abismo criado entre os muito ricos e os muito pobres nos países ditos desenvolvidos, está escrito no vento que a nossa decadência e o colapso social estão em contagem decrescente e assim, ESTA COISA tão louvada e tão em uso, chamada pelo que verdadeiramente não é, isto que visa ao relaxamento geral e, irreflectidamente por uns, perversamente por outros se nomeia de democracia, esta espécie de culto ao Pai Natal, que eu chamaria de ditadura totalitária do mau gosto e do mau cheiro é a pior das drogas conhecidas. Se ainda houver lugar para a esperança, devemos cuidar – devíamos cuidar – de que não cause habitação irreversível e esperar que a nossa actual dependência não nos seja letal, que venha uma ressaca boa seguida de um nunca mais.

Esta malignidade sub-reptícia e hipócrita de que o deus mercado depende como o caruncho depende da madeira; esta religião que ao mercado incensa, esta magia negra que nos corrói a alma, destrói a liberdade pela libertinagem, a dignidade pelos jogos prostibulares, o pensamento pelo pronto a dizer, a convivência pela robotização, a alegria pelos seus simulacros, pelos reality shows...

... Esta domesticação fanática e auto consentida usa a nossa rendição para criar um sistema ficcional onde os mortos-vivos se alimentam de pipocas e os cadáveres adiados nem sequer procriam, limitam-se a beber da taça das abominações como se cada um – como se todos – fosse a grande prostituta de Babilónia.

 

terça-feira, 1 de março de 2022

VÊM AÍ OS RUSSOS

 

Vendas Novas, 01 de Março de 2022

 

Um acontecimento ou uma qualquer situação é sempre uma consequência; há causas mediatas, causas imediatas e causas remotas, óbvias umas e outras nem tanto. Em termos de relações entre os homens e as nações usar o conceito de culpa, que é coisa demasiado religiosa, como amiúde se faz, é sempre desresponsabilizador de uns para encontrar a inocência de outros, naturalmente que dos nossos, o que nos faz esquecer uma regra básica da dança: para dançar o tango são precisos dois. O presente drama da invasão russa da Ucrânia é também um tango, macabro, mas um tango. Todavia, não se devem confundir as coisas, o par de dança não é a Rússia com a Ucrânia, mas a águia bicéfala e o urso das estepes – USA vs. Federação Russa – que usam a Ucrânia como pista de dança, os primeiros como cabeça-mor do Império Europeu do Ocidente e o segundo como Império Europeu do Oriente. Não será segredo para ninguém que os cristãos russos – a Igreja Ortodoxa – se consideram herdeiros de Bizâncio, o que nos aprisiona na ideia da repetição histórica, ou na analogia com o Império Romano. Roma, como sabemos, morreu de pusilanimidade, Bizâncio por não ter conseguido resolver o magno problema do sexo dos anjos, e os seus reerguidos herdeiros foram tropeçando na História, porque toda a História de Bizâncio é feita de tropeços.

Por mais que seja uma evidência que a Europa vai de S. Francisco a Vladivostoque, nós por aqui, habitantes das terras decadentes, somos reverentes perante quem ainda manda no mundo e as suas gentes lá para os lados da sede do império, no outro lado do Atlântico, e não vamos em bizantices: entre o medo e o desprezo quase sempre o desprezo prevalece, porque nós sabemos perfeitamente qual é o sexo dos anjos.

Criámos uma entidade ficcional e unívoca – os russos – e de modo algum lhes podemos conceder o estatuto de serem como nós, de serem dignos da nossa mesma humanidade. Não são sequer estrangeiros, são alienígenas, mas dos maus. Bebemos sofregamente a propaganda de guerra dos meios de comunicação social para ampliar o nosso vocabulário de repúdio e consolidarmos, como convém à ideologia do Império Europeu do Ocidente, o nosso medo e o nosso ódio e ampliarmos tudo isto gritando: vêm aí os russos.   

 E os russos são o outro, não são europeus, não são cá dos nossos. Este sentimento esteve sempre implícito nas relações do "Ocidente" com os tais russos, fossem eles o Império czarista, a União Soviética ou a Federação Russa; imperou o ódio de cá e o ódio de lá. Nestes três estágios imperiais pelos quais passou a Rússia, sempre um césar governou despótico, fosse ele Ivan, Nicolau, Estaline ou Putin. A palavra russa czar (leia-se tzar), tem origem no étimo grego para césar. 

Na sequência do desmoronamento da União Soviética, o vencedor do concurso de tango – o Ocidente – resolveu isolar o Urso ferido, expulsá-lo da Europa, cercá-lo com uma aliança militar dos bons, dos nossos, contra o outro, o mau, o alienígena. Recordemos que, aquando da I Grande Guerra, também os vencedores decidiram esmagar e humilhar a Alemanha até aos limites da maior das ignomínias e crueldade. O Povo ferido da Alemanha, impotente e engolindo a raiva, esperou (fabricou) um salvador, um redentor, mesmo que um Cristo negro: Hitler. Temos agora uma repetição histórica, mas como a História na verdade não se repete tal-qual, apenas por similitude, o urso ferido está raivoso, mas não é impotente, tem armas atómicas. Também o sofrimento do povo da Ucrânia tem precedentes na História. Quando os USA, na sua guerra semifria contra a URSS incentivaram checos e húngaros para se levantarem contra o Urso os alevantados ficaram sozinhos e foram esmagados. Também a presente guerra dos USA contra os «russos» por interpostos actores é uma repetição. Mais uma vez, incentiva-se e fica-se a ver os cavalinhos de borla.

Olhar o mundo como um filme de cowboys não nos deixa ver claro, ou somos pelos cowboys ou somos pelos índios; aqueles por quem somos são o bem e são os bons, os outros são o mal e são os maus, porque o diabo – e diabo quer dizer aquele que divide – são os outros. Não temos a coragem de entender que não nos dividimos em bons e maus, somos apenas a aptidão ou a inaptidão com que lidamos com a nossa circunstância, e toda a aptidão (ou o seu contrário) se desenvolve ferida pelas nossas ancestrais sequelas da necessidade e do medo, que resolvemos pela agressão ou pela fuga. No caso que nos deve preocupar da guerra USA - Rússia, onde a Ucrânia é apenas o chamariz, seria útil os ocidentais terem consciência do ditado oriental que diz que quando se encurrala um tigre se deve deixar uma janela aberta. Quem se der ao trabalho de analisar o mapa dos territórios onde decorrem os actuais conflitos verificará que a Rússia se sente cercada e afastada da Europa, reduzida à sua situação asiática. Se a Ucrânia pertencesse à NATO a esquadra russa do Mar Negro teria de sair, teria como destino ser desmantelada. O tigre não tem janela por onde fugir, ou melhor, resta-lhe uma fuga em frente e o furor ocidental atiça o tigre o mais que pode.

Quando, seguindo a estabelecida propaganda de guerra, se chamam a papaguear os comentadores de conveniência, que debitam como se fosse ciência, que a guerra na Ucrânia se deve a que o Putin é maluco colocamos um véu no nosso entendimento e podemos dormir descansados, de consciência aliviada. Mas todas as coisas têm duas faces. Se o Putin for maluco, então está desculpado, porque os malucos são inimputáveis; mas se é totalmente racional – e eu acho que sim – é responsável pelo que faz e pelo que manda fazer. Se for assim como digo, duas coisas se podem dar: ou age por necessidades políticas, ou age por razões religiosas. Se forem religiosas, a haver culpa não é dele é do diabo. Penso que é mais realista procurar as razões políticas, e em política não se fala do que é justo ou injusto nem do bem nem do mal, porque a política é apenas uma arte do possível. Temos de perguntarmo-nos: os interesses dos russos são vitais ou não? Se são, fica a pergunta: como se trava uma potência atómica? Se não são, converse-se até esgotar a saliva. Se os ucranianos conseguirem aguentar a resistência à invasão pode ser que o Putin gere anticorpos internos. O pior que nos pode acontecer é termos o futuro da humanidade suspenso do bater de asas de uma borboleta.

Estamos a criar as condições para o suicídio da humanidade, mas pode ser que não tenha qualquer importância. Morreremos descansados porque todos sabemos bem quem são os culpados – nós não somos, os outros são – e assim será dito de um lado e do outro da contenda, enquanto não sobrevier o silêncio.

No grande sobressalto da Guerra Fria que foi a crise dos mísseis em Cuba, uma canção de protesto de Tom Lehrer dizia «Quando nos formos, vai toda a gente, todos cheios de um brilho incandescente.»

 

 

UMA VERDADE INCONVENIENTE

 

Este artigo foi colocado em 20 do Fevereiro, no Facebook, como comentário a uma postagem de um amigo. Coloca-se agora aqui para o associar ao artigo escrito hoje sobre este mesmo assunto, que colocarei aqui também.

https://www.facebook.com/abdul.cadre2?comment_id=Y29tbWVudDo0ODk1ODY5NjU3MTI1OTEzXzQ4OTc2OTk2NDAyNzYyNDg%3D&__cft__[0]=AZX6tzuzKudtPKPLMmEnWeXr2A2OK3SxasMzfzJG1vQtgBUMCTNpLziSzwjYPrNr-OVJSLp3eOhjLpplGjPIfejLm33hJwfwlwRdFwjR7C840lFHeIaq9YkTa0TwnbKs-f8kc2BoG4RznUpslsBv7MLppS9qA5vuCsC4bGm_dKrSKg&__tn__=R]-R


 Nesta chamada guerra da Ucrânia, a ideia estratégica da geopolítica ianque é expulsar definitivamente a Rússia da Europa, definindo a sua fronteira na Ucrânia. É a continuação do cerco na sua fase final. Economicamente, visa encarecer o petróleo e substituir-se à Rússia no fornecimento de gás; vender à Ucrânia e aos países peões do lime material militar em quantidades colossais, como esperam sequiosos os homens do complexo industrial militar. Aos americanos, o que poderá falhar é não poderem ocupar, através da NATO, a Ucrânia, mas isso é apenas um pormenor de somenos, porque se os russos o impedirem por acção militar, o Império Europeu do Ocidente decretará sanções. Ora, nos USA, temos o presidente mais imbecil de toda a sua História, ainda por cima desbocado. Por exemplo, permitiu-se dizer que a primeira sanção contra a Rússia seria fechar-lhe o gasoduto. Um jornalista ainda lhe perguntou: mas como? O gasoduto não é russo, é alemão. E ele retorquiu: nós fechamos, nós fechamos. No desbocar teve ainda melhor uns dias antes, quando disse que a Rússia seria expulsa do sistema bancário internacional de pagamentos. Este idiota não percebe que num caso desses não eram só os russos a ser expulsos, era o mundo inteiro. O idiota tem neste momento as piores sondagens de todos os presidentes e o Trump esfrega as mãos com o regresso à Casa Branca garantido. O idiota quis ser como os outros presidentes que quando as sondagens andavam em baixo arranjavam uma guerra, mas não percebeu que tinha de ser uma coisa de vitória garantida e povo a bater palmas. Podia bombardear Cuba, ou Venezuela, mas aí não se gastariam balas em quantidade suficiente, além de Cuba não ter qualquer interesse estratégico ou económico e a Venezuela estar bem como está: serve os interesses ianques do aumento do preço do petróleo com a vantagem de comprarem o da Venezuela ao preço da chuva na candonga. Se não puserem bom senso na cabecinha senil e as águias que o aconselham não encolherem as unhas, o mundo vai passar um mau bocado, no mínimo, porque no máximo não quero pensar. Vamos ver que a Covid foi uma coisa sem importância. Isto de empurrar os russos para os braços dos chineses não lembra ao careca. Então, dentro em breve, presumidamente, vamos ter na direcção do mundo o mandarim Xi Jimping, o Czar Putin e o Cowboy de Wall Street Donald Trump.


sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

EIXO DO MAL

 

Ter de quando em vez opiniões desconchavadas, vá que não vá, é da natureza humana, mas militar no desconchavo é bizarria. O moderador do programa devia ter sempre à mão um ambientador, mesmo que comprado na loja do chinês, para fazer fistfist às redundâncias redondas redondinhas circulares e extensas jorradas como sentenças urbi et orbi, todavia raramente interessantes. Ó Dona Clara, não há pachorra.

Vontade de ter razão todos nós temos, mas nem todos têm vaidade suficiente para a insistência na inconsistência. Schopenhauer escreveu a propósito um belíssimo ensaio, publicado postumamente, «A Arte de Vencer uma Discussão Sem precisar de ter Razão», obra que talvez fosse útil à Pluma Caprichosa ter na mesa de cabeceira. Todavia, penso que a filosofia que mais falta lhe faz é a de «Prognósticos só no Fim do Jogo», criada pelo filósofo plebeu e não académico João Pinto, ex-profissional de futebol. Sei perfeitamente que futebol e futebolistas não são do campeonato da Dona Clara, que será mais da canasta, dos guardians e quejandos e que o dito cujo não é inglês nem americano, será Claramente duma casta desprimorada, mas que se lhe há de fazer, temos de viver com aquilo que temos, não é?

Mas vejamos: a Dona Clara, em 27 de Janeiro, dizia «Costa sua de pânico porque sabe que pode estar a pouco tempo de perder tudo», mas quatro dias depois, em 31 de Janeiro, sentenciava com a sua proverbial pesporrência: «a maioria absoluta era inevitável». Está a ver, está a ver, devia prestar mais atenção à plebe, realmente, prognósticos só no fim do jogo.

O mais sensato interveniente no programa, Pedro Marques Lopes, anda a perder o Eixo. Aquela de dizer que o Canadá é o maior país do mundo não lembra ao careca, como diria o tal que ele tanto aprecia e elege. Objectiva e irrefutavelmente não é. O maior país do mundo em extensão é a Rússia, o Canadá pouco passa de metade. Ou seja, a diferença é tal que não dá para ignorar.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

PEDRO V.S. MAXIMILIANO

 

Os monarcas Pedro e Maximiliano são praticamente contemporâneos: o imperador mexicano nasceu em 1832 e morreu em 1867; o rei português, outorgante da carta constitucional da monarquia portuguesa de 1826, nasceu em 1798 e morreu em 1834.

Imediatamente a seguir à morte de D. Pedro IV, a Câmara dos Pares aprovou uma proposta de o homenagear com a construção de um monumento. Entretanto, em 1836, o Rossio mudou de nome, passando a chamar-se Praça D. Pedro IV e a cidade de Lisboa viu-se perante três modelos de monumento, o mais deslumbrante dos quais previa a construção de uma pirâmide onde seria alojada a urna do rei, mas que não foi aprovado nem construído. Veio a ser aprovado um projecto e iniciada a construção de algo que o povo baptizou de «galheteiro», coisa tão contestada que acabou demolida em 1864.

Fez-se então um concurso internacional e, das dezenas de propostas recebidas, o júri optou por uma estátua a encimar uma coluna e a equipa francesa dos artistas Rodert e Davioud foi a escolhida, É aqui que vai começar a lenda – ou história verdadeira, quem sabe – porque estes artistas tinham ganho um concurso para coisa semelhante para o Maximiano, estando a estátua de bronze deste praticamente acabada. Ora, acontece que a monarquia mexicana é derrubada violentamente e Maximiliano é fuzilado em 1867. Seria um desastre económico para o atelier francês, mas certamente os artistas conheciam o provérbio português de que é no aproveitar é que está o ganho, e assim, ao que parece, com uns pequenos retoques Maximiliano Tornou-se Pedro IV. E pronto, em 1870 inaugura-se, debaixo de muita polémica, a estátua que ainda hoje está no mesmo sítio. O mais inconformado com o monumento Eça de Queiroz, escreveu: «Essa colossal vela de estearina, cujo pavio é o dador da carta».

Verdade? Ou isto foi na época uma teoria da conspiração à portuguesa?