Vendas Novas, 01 de Março de 2022
Um acontecimento ou uma qualquer situação é sempre uma
consequência; há causas mediatas, causas imediatas e causas remotas, óbvias
umas e outras nem tanto. Em termos de relações entre os homens e as nações usar
o conceito de culpa, que é coisa demasiado religiosa, como amiúde se faz, é
sempre desresponsabilizador de uns para encontrar a inocência de outros, naturalmente
que dos nossos, o que nos faz esquecer uma regra básica da dança: para dançar o
tango são precisos dois. O presente drama da invasão russa da Ucrânia é também
um tango, macabro, mas um tango. Todavia, não se devem confundir as coisas, o
par de dança não é a Rússia com a Ucrânia, mas a águia bicéfala e o urso das
estepes – USA vs. Federação Russa – que usam a Ucrânia como pista de dança, os
primeiros como cabeça-mor do Império Europeu do Ocidente e o segundo como Império
Europeu do Oriente. Não será segredo para ninguém que os cristãos russos – a
Igreja Ortodoxa – se consideram herdeiros de Bizâncio, o que nos aprisiona na
ideia da repetição histórica, ou na analogia com o Império Romano. Roma, como
sabemos, morreu de pusilanimidade, Bizâncio por não ter conseguido resolver o
magno problema do sexo dos anjos, e os seus reerguidos herdeiros foram
tropeçando na História, porque toda a História de Bizâncio é feita de tropeços.
Por mais que seja uma evidência que a Europa vai de S.
Francisco a Vladivostoque, nós por aqui, habitantes das terras decadentes,
somos reverentes perante quem ainda manda no mundo e as suas gentes lá para os
lados da sede do império, no outro lado do Atlântico, e não vamos em bizantices:
entre o medo e o desprezo quase sempre o desprezo prevalece, porque nós sabemos
perfeitamente qual é o sexo dos anjos.
Criámos uma entidade ficcional e unívoca – os russos – e de
modo algum lhes podemos conceder o estatuto de serem como nós, de serem dignos
da nossa mesma humanidade. Não são sequer estrangeiros, são alienígenas, mas
dos maus. Bebemos sofregamente a propaganda de guerra dos meios de comunicação
social para ampliar o nosso vocabulário de repúdio e consolidarmos, como convém
à ideologia do Império Europeu do Ocidente, o nosso medo e o nosso ódio e
ampliarmos tudo isto gritando: vêm aí os russos.
E os russos são o
outro, não são europeus, não são cá dos nossos. Este sentimento esteve sempre
implícito nas relações do "Ocidente" com os tais russos, fossem eles
o Império czarista, a União Soviética ou a Federação Russa; imperou o ódio de
cá e o ódio de lá. Nestes três estágios imperiais pelos quais passou a Rússia,
sempre um césar governou despótico, fosse ele Ivan, Nicolau, Estaline ou Putin.
A palavra russa czar (leia-se tzar), tem origem no étimo grego para césar.
Na sequência do desmoronamento da União Soviética, o vencedor
do concurso de tango – o Ocidente – resolveu isolar o Urso ferido, expulsá-lo
da Europa, cercá-lo com uma aliança militar dos bons, dos nossos, contra o
outro, o mau, o alienígena. Recordemos que, aquando da I Grande Guerra, também
os vencedores decidiram esmagar e humilhar a Alemanha até aos limites da maior
das ignomínias e crueldade. O Povo ferido da Alemanha, impotente e engolindo a
raiva, esperou (fabricou) um salvador, um redentor, mesmo que um Cristo negro:
Hitler. Temos agora uma repetição histórica, mas como a História na verdade não
se repete tal-qual, apenas por similitude, o urso ferido está raivoso, mas não
é impotente, tem armas atómicas. Também o sofrimento do povo da Ucrânia tem
precedentes na História. Quando os USA, na sua guerra semifria contra a URSS
incentivaram checos e húngaros para se levantarem contra o Urso os alevantados
ficaram sozinhos e foram esmagados. Também a presente guerra dos USA contra os
«russos» por interpostos actores é uma repetição. Mais uma vez, incentiva-se e
fica-se a ver os cavalinhos de borla.
Olhar o mundo como um filme de cowboys não nos deixa ver
claro, ou somos pelos cowboys ou somos pelos índios; aqueles por quem somos são
o bem e são os bons, os outros são o mal e são os maus, porque o diabo – e
diabo quer dizer aquele que divide – são os outros. Não temos a coragem de
entender que não nos dividimos em bons e maus, somos apenas a aptidão ou a
inaptidão com que lidamos com a nossa circunstância, e toda a aptidão (ou o seu
contrário) se desenvolve ferida pelas nossas ancestrais sequelas da necessidade
e do medo, que resolvemos pela agressão ou pela fuga. No caso que nos deve
preocupar da guerra USA - Rússia, onde a Ucrânia é apenas o chamariz, seria
útil os ocidentais terem consciência do ditado oriental que diz que quando se
encurrala um tigre se deve deixar uma janela aberta. Quem se der ao trabalho de
analisar o mapa dos territórios onde decorrem os actuais conflitos verificará
que a Rússia se sente cercada e afastada da Europa, reduzida à sua situação
asiática. Se a Ucrânia pertencesse à NATO a esquadra russa do Mar Negro teria
de sair, teria como destino ser desmantelada. O tigre não tem janela por onde
fugir, ou melhor, resta-lhe uma fuga em frente e o furor ocidental atiça o
tigre o mais que pode.
Quando, seguindo a estabelecida propaganda de guerra, se
chamam a papaguear os comentadores de conveniência, que debitam como se fosse
ciência, que a guerra na Ucrânia se deve a que o Putin é maluco colocamos um
véu no nosso entendimento e podemos dormir descansados, de consciência
aliviada. Mas todas as coisas têm duas faces. Se o Putin for maluco, então está
desculpado, porque os malucos são inimputáveis; mas se é totalmente racional –
e eu acho que sim – é responsável pelo que faz e pelo que manda fazer. Se for
assim como digo, duas coisas se podem dar: ou age por necessidades políticas,
ou age por razões religiosas. Se forem religiosas, a haver culpa não é dele é
do diabo. Penso que é mais realista procurar as razões políticas, e em política
não se fala do que é justo ou injusto nem do bem nem do mal, porque a política
é apenas uma arte do possível. Temos de perguntarmo-nos: os interesses dos
russos são vitais ou não? Se são, fica a pergunta: como se trava uma potência
atómica? Se não são, converse-se até esgotar a saliva. Se os ucranianos
conseguirem aguentar a resistência à invasão pode ser que o Putin gere
anticorpos internos. O pior que nos pode acontecer é termos o futuro da
humanidade suspenso do bater de asas de uma borboleta.
Estamos a criar as condições para o suicídio da humanidade,
mas pode ser que não tenha qualquer importância. Morreremos descansados porque
todos sabemos bem quem são os culpados – nós não somos, os outros são – e assim
será dito de um lado e do outro da contenda, enquanto não sobrevier o silêncio.
No grande sobressalto da Guerra Fria que foi a crise dos
mísseis em Cuba, uma canção de protesto de Tom Lehrer dizia «Quando nos
formos, vai toda a gente, todos cheios de um brilho incandescente.»