domingo, 15 de outubro de 2017

UM RECADO ÀS CENTRAIS DE REIVINDICAÇÃO

V. N. 15 OUT 2017

Aqueles que, institucionalmente, se reivindicam da representação de quem trabalha por salário sentem-se felizes e úteis a lutar – é esta a expressão – por horas de trabalho. É a semana das 40 horas, é a semana das 35 horas, mas não se ouve, ou é muito raro ouvir-se reivindicar horas de descanso, e muito menos o direito à preguiça, de que nos falava o genro de Marx.

Isto não é um exclusivo português, é assim em todo o mundo onde se reivindica sem medo do chanfalho.

É bem-sabido que os trabalhadores estão muito habituados a ocuparem-se de coisas que lhes mandam fazer. Dizia-se antigamente que quem não trabuca não manduca; hoje, alguns trabalhadores com mentalidade de escravo, vangloriam-se de serem incondicionais e exemplares amantes das lides braçais – de cuja sinceridade eu duvido –, dizendo alto e bom som coisas tão idiotas quanto esta: «o pessoal não quer trabalho, quer é emprego». Presumidamente, estes serão os mesmo que apostam no Euromilhões com o fito de mandarem à oura banda o patrão, caso se tornem milionários. Afinal, está visto, não querem trabalho e não querem emprego, querem o que todos querem, boa vida. Porque o facto é este: perante o trabalho há apenas dois géneros de pessoas: as que não gostam e as que mentem.

Mas voltemos aos que reivindicam. Como se sabe, o desemprego grassa no mundo, mas não seria assim se se diminuísse um dia na semana de trabalho e esta fosse, não de 40, não de 35, mas de 24 horas. Desta forma, o que inevitavelmente teríamos era falta de trabalhadores, coisa que contraria a lógica do sistema, que exige desemprego técnico elevado como desincentivo das reivindicações salariais.

Não pensem que estou a descobrir a pólvora nem a inventar a roda quadrada. Lembremo-nos da Península Ibérica, ao tempo da convivência entre cristãos, judeus e mouros. Nesse tempo, havia três dias em que era proibido trabalhar: a Sexta-feira, por causa dos muçulmanos, o Sábado, por causa dos judeus e o Domingo, por causa dos cristãos. E como todos os outros dias eram dia de feira, havia sempre quem dissesse: toma aí conta das galinhas, que eu tenho de dar um salto à feira para vender as cebolas.

É por tudo isto que eu detesto mentirosos, isto é, os que dizem que gostam de trabalhar.

domingo, 3 de setembro de 2017

TERAPIAS

Vendas Novas, 3 SET 2017

– De Que sofres? – Pergunta o terapeuta.

– De raiva incontida a marxistas e comunistas. Só me apetece chamar-lhes ignorantes e idiotas, mas se o faço, descobrem que eu sou democrata, mas poucochinho. Gostava de ter nascido na América, mas tive azar, nasci nesta piolheira.

O terapeuta franziu o sobrolho, balançou a cabeça como aqueles bonecos irritantes à janela dos mercedes dos patos bravos, escreveu qualquer coisa num papel e disse-lhe:

– Está aqui a terapia possível.

dia

– De que sofres?

– De angústia existencial, sinto-me comunista, mas poucochinho. O pior é que tenho uma vizinha que acha que todos os comunistas, mesmo que poucochinho, são ignorantes e idiotas. O que é que acha?

– Não acho nada, mas vou dar-lhe uma ocupação. Tome lá.

E passou-lhe a receita para a mão.

dia

– De que sofres?

– Da síndroma do homem enganado. Sofro tanto que já perdi o cabelo todo. Sinto-me social-democrata, mas sei que a social-democracia não existe; sinto-me dragão e sei que os dragões não existem; tenho consideração por toda a gente e sei que isso não serve para nada; falo e a minha voz não se ouve, porque se calhar não existe. A minha única esperança são os beijinhos e abraços do meu apoiado.

O terapeuta entregou-lhe o papelinho da praxe e ele saiu um pouco mais aliviado do consultório.

dia

– De que sofres?

– De gaguez verbal e mental, de falta de ideias, de falta de graça e falta-me o Sócrates para lhe malhar à grande. Temo perder o emprego por extinção do posto de trabalho.

Falou assim, mas não ficou aliviado. Recebeu o papelinho e saiu cabisbaixo.

O quinto paciente, que estava farto de esperar, por receio ou timidez desistiu da consulta. Leu as receitas dos outros quatro, disse que sim com a cabeça e lá foram os cinco para a Terapia Ocupacional. Bom, não é assim que lhe chama o Correio da Manha, dado andarem de candeias às avessas, prefere chamar-lhe Eixo do Mal.

domingo, 16 de julho de 2017

RELER PESSOA POLÍTICO

Vendas Novas, 16 de Julho de 2017

Fernando Pessoa considerava a Europa fruto de cinco traduções que se interpenetravam. sem resolver as contradições de tal mistura. Estas cinco tradições seriam, a seu ver a HELÉNICA, a ROMANA, A MONÁRQUICA 8OU ARISTOCRÁTICA), a NACIONALISTA e a ECONÓMICA. Na imperial romana incluía o cristianismo, e justificava não incluir uma tradição científica, porque «a ciência não é fruto do nosso arbítrio».

Dado que todas as tradições têm inevitavelmente os seus inimigos, dizia ele que a tradição helénica tem por inimigos, entre outros, «todas as formas de cristianismo e sobretudo as protestantes (por serem mais hebraicas)»; a tradição romana «tem por inimigos os humanitários»; a tradição monárquica e aristocrática «os republicanos, os monárquicos constitucionais e, entre a plutocracia, a de origem internacional, isto é, judaica»; a tradição económica teria como inimigos todos aqueles que discordam dos seus princípios fundadores: a propriedade, o capitalismo e o regime de concorrência. Não especifica taxativa e claramente quem são os inimigos do nacionalismo, mas isso colher-se-á dispersamente ao longo dos seus textos políticos, merecendo especial atenção as distinções que irá fazendo entre nacionalismo e patriotismo.

Em alguns textos, Pessoa caracteriza o patriotismo como antagonista, o que nos parece mais aplicável ao nacionalismo; iriamos até que o patriotismo tem mais de inclusivo que de exclusivo, inscrevendo-se mais no orgulho próprio do que no desprezo alheio.

A determinado passo, diz ele: «o patriotismo (…) é a base do instinto social», que ele considera o único instinto social verdadeiro, que caracteriza como «…um egoísmo colectivo, base de toda a vida psíquica», mas parece-nos que isto se aplica com mais pertinência ao nacionalismo, que é uma resultante do instinto gregário.

Com o seu particular entendimento, Pessoa conclui que o patriotismo – e nós diríamos nacionalismo – como instinto, odeia tudo o que não seja ele: «… o instinto é radicalmente antagonista» e, portanto, «a atitude normal de qualquer nação com relação às outras é o ódio…», que «…a guerra é, por conseguinte, o estado natural da humanidade, não sendo a paz mais que um estado de preparação para a guerra».

sábado, 15 de julho de 2017

A LÓGICA DO POSSIDENTE

A propósito da forma de propriedade. Fernando Pessoa, imaginou para a Ordem de Cristo um 11º mandamento, chamado de templário, que diria «os bens da terra são de todos sem serem de ninguém em particular». Pelo nosso lado, imaginamos que quando o homem aqui chegou não lhe passou pela cabeça que isto pertencesse aos dinossauros. Inventou a propriedade, não por decisão racional, mas pela força das circunstâncias; o mais bruto submeteu o mais delicado. Criaram-se relações de dependência. Nada disto foi pensado, nada disto foi racional, foi a lei básica de que é a tripa quem mais ordena.

Ao longo da História, muitos foram os homens que sonharam utopias, muitos foram os que gritaram isto não pode ser assim. As multidões chamaram-lhes loucos, o povo odiou-os do mais profundo das entranhas, porque a condição povo é ser depositário, é ser útero, é ser reserva de tudo aquilo que foi, pela simples razão de não o poder ser do que há de vir. Dizia Krishnamurti que a verdade é uma terra sem caminho. Substituamos verdade por futuro.

O peso das gerações mortas é demasiado grande para se remover de golpe. Esta é razão porque todas revoluções fracassam, no sentido de que têm um período de euforia, para logo se lhe seguir a depressão, seguindo-se a instalação do que estava antes, primeiro de forma rude, depois será mais suave ou não.

Disse Fernando Pessoa: «Uma revolução não falha nunca; as ideias revolucionárias falham sempre». Isto aplica-se como fato feito à medida à revolução bolchevique, onde a ideia era abolir a propriedade dos meios de produção e criar o homem novo. Ora, como é possível fazer um fato novo com tecido velho? Como é possível abolir a propriedade dos meios de produção, se o operário ocupa a fábrica e chama-lhe dele, isto é, substituiu-se um patrão por outro. Quem assistiu às ocupações no Alentejo sabe disto melhor do que eu, que não estava cá.

Na China, Mao Zedong inventou aquela coisa da Revolução Cultural, com o objectivo de extirpar as ideias velhas, as ideias burguesas. Todo o boçal, todo o ignorante, chegava ao pé de qualquer instruído e pendurava-lhe um cartaz ao pescoço: inimigo do povo. O povo chama sempre inimigo àquele que o quer enaltecer – é por isso que eu faço precisamente o contrário, apesar do contrário não significar resultado contrário – povo é emoção, não é razão.

O futuro da humanidade será selvático se se basear na emoção, será sombrio se se basear na razão, só é possível ser promissor pelo advento do para além da razão e da emoção, de que não falaremos por agora. Mas convém que se diga que a filosofia agostiniana do paradoxo mora ali.

A civilização é um verniz dado numa capa muito leve, um pequeno sobressalto e risca, abre fendas. Não vale a pena falar do desmoronamento da Jugoslávia, ou vale?

Falemos dos sistemas de propriedade: desde que os portugueses, com as suas navegações abriram as portas ao capitalismo e à globalização, ninguém consegue pensar por outros parâmetros nem entender outro paradigma. Farto-me de rir – com vontade de chorar, claro – quando os opinadores encartados debitam nas pantalhas televisivas a China Comunista assim e a China Comunista assado, uma China que constitui o máximo da concentração financeira e económica que o mundo já conheceu ser chamada de comunista tem muita piada. Bem andou o reformado Cavaco Silva, quando visitou a China e disse com clareza – não estava a comer bolo rei – «isto é que é um socialismo progressista. Traduzindo o Cavaco, já que o seu tradutor oficial (Graça Moura) nos deixou: Que beleza, o estado e meia-dúzia de milionários são donos de tudo, não há greves, a jornada de trabalho é a que for preciso, o salário é o que quem manda decide…

Só há um sistema produtivo no mundo: aquele que se baseia na propriedade e no dinheiro. Quem tem o dinheiro e a propriedade varia, o que não varia é ter.

Será diferente no futuro? É expectável que sim. O professor Agostinho da Silva costumava dizer que os patrões sempre defenderam os seus interesses pagando o mínimo possível aos seus trabalhadores, mas aproximava-se o tempo em que teriam de pagar aos trabalhadores sem trabalho para eles poderem comprar. É a vida. E é isto que alimenta o meu optimismo. Quando não resolvemos as coisas elas resolvem-se por si.

segunda-feira, 29 de maio de 2017

SEQUELAS DO TESSIQUEZAPE

ROMPER BARREIRAS, como é óbvio e a própria palavra romper no-lo diz, implica violência, o que varia em cada acto é o grau e a justificação (ou a desculpa).

A violência está profundamente enraizada na natureza, na humanidade, em cada um de nós. Nascer é uma violência e morrer é-o também. Na pragmática, no acaso e na transcendência há uma constante de violência. Concebemos o parto sem dor para as nossas crias, mas não o soubemos inventar para a reprodução dos dias.

Olhando o passado distante, poucos se apercebem do facto de ter sido há milhares de anos que o homem rompeu a barreira do som pela primeira vez. Verdade, isso mesmo, há milhares de anos, sem qualquer introdução aqui de realismo fantástico. Há milhares de anos, quando era ainda impensável voar, coisa que apenas atribuíamos aos insectos, às aves e aos anjos, embora o morcego, que não pertencia nem pertence a nenhuma destas categorias, também voasse. E bem. E continua a voar.

Há milhares de anos, repetimos, quando não havia imagem sonhada sequer de aviãozinho de pau-e-corda, quanto mais de supersonorização.

Foi há milhares de anos quando, digamos que por desfastio ou necessidade de afirmação, inventámos o chicote. Dava um prazer dos diachos ouvir aquele tessiquezape, mas não foi pelo prazer dessa música concreta que o inventámos. Não. O que nos moveu — o que sempre nos move — foi pensar no que lucraríamos com o castigo do lombo das bestas e dos escravos submetidos aos interesses da nossa tripa e do nosso ócio. Ontem como hoje, é a tripa que mais ordena, que tudo condiciona.

À luz do que sabemos hoje, torna-se perfeitamente evidente que rompíamos então a barreira do som apenas do lado de fora, e é claro que, a partir daí, aperfeiçoámos imenso a técnica do tessiquezape. E não confundamos as coisas: nos seus voos entre Paris e Nova Iorque, o Concorde, entretanto falecido e descontinuado, mais não foi do que um fait-divers, porque afinal, bem lá no fundo, o que nos movia era o insofismável desejo do abate seguro e rápido do inimigo em voo, ou o seu churrasco, quando rastejante, não o devaneio transcrito nos jornais de chegar ao destino antes da hora da partida.

Pois é: contrariamente ao que fingem pensar certas almas piedosas, do parto ao genocídio há o exercício constante da violência e toda a acção humana se caracteriza pela ruptura de barreiras reais ou imaginárias: o romper das águas.

Será uma maldição?

Não e sim! É a maldição da besta, porque ao homem, assim o presumimos, caberia tomar consciência dos medos escondidos nos seus porões, a desocultação dos seus atavismos e a sublimação dos seus actos pela iluminação do gesto. Palpita-nos, porém, que isto não seja muito bom para o share e seja demasiado prejudicial para o mercado...

E é de temer — sem dúvida que sim — que se confunda iluminação do gesto com o incêndio das cidades, à bomba ou por archote, e a iluminação do homem pela sua submissão a qualquer doutrina salvífica que pseudo-iluminados de ocasião decretem.

Faz muito tempo, um judeu de origem portuguesa, nascido não se sabe muito bem onde, inventou uma consigna que se tornou emblemática para aquela que viria a tornar-se na mais ecuménica das revoluções triunfantes, mas todavia ainda não completamente realizada, dada a grande dificuldade da quase quadratura do círculo que é manter inseparáveis Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

É comum etiquetar-se de francesa esta revolução, mas não devíamos chamar-lhe assim. O ter-se tornado tão contagiosa deveu muito à ganância e à intrepidez napoleónicas, mas Napoleão não era originariamente francês, era corso. Burguesa, sim, é que ela foi e não deixou de ter presente o tessiquezape do nosso atavismo, como não poderia deixar de ser. Se beneficiamos hoje — e muito — dos seus aspectos mais positivos, tal não deve impedir de nos lembrarmos das grandes iniquidades perpetradas e de ter presente que toda a rebelião, como disse alguém, é um invento que serve para substituir uma forma de tirania por outra.

Por aquilo que já dissemos e pelo que digamos mais adiante, poderá inferir-se que somos pessimistas, mas colocamos aqui este parêntesis para afiançar que não. Aliás, como sabem, pessimistas e optimistas cabem na tal parábola do copo meio cheio e do copo meio vazio. Também se poderá pensar que achamos que o mundo esteja hoje pior do que no passado. Não está. Além disso, o homem está bem melhor e, sob o ponto de vista material, nunca esteve tão confortavelmente instalado quanto hoje. O que acontece é que chegámos a um fim de ciclo, as nossas instituições caminham para a putrefacção e ainda não arregaçámos as mangas para nos reorganizarmos para uma nova era e um novo mundo. Só isto, que não é pouco.

Assim, que não se assustem os leitores, porque é evidente que, apesar da pesada atracção da nossa animalidade, progredimos alguma coisa no sentido da rejeição dos infernos que fomos criando ao longo da nossa caminhada. Todavia, descuidámos muitos valores que pareciam conquistas seguras. Por exemplo, falar em honra, respeito e verdade provoca comummente o riso e o desdém; são conceitos incomportáveis para o discurso em uso, o discurso que o mercado determina e a apatia consente.

Quanto ao que progredimos, poderíamos dizer que do atavismo reproduzido na tradição oral, da pragmática da tribo, dos tabus, da união pelo sangue e pelo chefe, das entoações mágicas e guerreiras, da agressividade de sobrevivência e domínio progredimos para a História, a Filosofia, a Religião, a Política, a Poesia, o Canto, a Dança, o Desporto, mas do atavismo guerreiro forjado na irmandade e na entreajuda, da hospitalidade, da caridade, da religiosidade, da força física, da inteligência emocional, regredimos ou subvertemos perigosamente para a destruição massiva, o individualismo, a competitividade, a bastardia, o condomínio fechado; desdenhámos o sem-abrigo e enaltecemos o mercenário, vergámos a cerviz ante o poder do dinheiro, mergulhámos no estranho fanatismo da indiferença, detestámos as manhãs e inundámos as noites de néon...

E vejam como, para além de subsistir por toda a parte a velha escravatura stricto sensu, surgiram novas formas de escravatura e de dependência com características feudo-vassálicas: o trabalho temporário, o desemprego técnico, o migrante em fuga, os recursos humanos descartáveis...

Recursos humanos! Como se humano fosse coisa.

Em nome de um sistema que a si próprio se nega, estamos a tornar o mundo um lugar de ostracismo habitado por supranumerários; uma selva pós-moderna com selvagens reciclados, tudo isto embrulhado em apatia e justificado pela cibernética, porque só a cibernética pode explicar que é, aquilo que não é. A montante e a jusante da nossa apatia, os incendiários de sempre põem todo o zelo em que não falte nunca a devida ração de medo. Que sejamos avestruzes é o seu descanso, que não nos interroguemos sobre os nossos direitos de cidadania, a nossa liberdade, a nossa realização e a nossa felicidade é a sua garantia de conservação do poder, de manutenção dos privilégios.

Se a decadência de todas as instituições se acentua a cada dia que passa neste tempo que apodrece, que legitimidade sobra aos governos, sufragados ou não?

segunda-feira, 22 de maio de 2017

MALLEUS MALEFICARUM

 

Quando me confronto com a muita raiva à solta nas redes sociais, quero convencer-me que possa valer como uma enorme catarse. Seria bom que assim fosse. É o meu aldo optimista de olhar para as coisas. Mas, convenhamos, passa-me depressa, porque de imediato me vem à lembrança o muro das lamentações, em Jerusalém, que me obriga a esta interrogação: Não será o Facebook, por exemplo, um gigantesco muro cibernético de lamentações?

Estas cogitações levam-me a murmurar baixinho, para que ninguém oiça e se ponha a suspeitar que também eu me lamento, que é demasiado comum o vício de nos especarmos frente aos muros, ora chorando, ora espumando de raiva, como lobos enjaulados. Quando é que aprendemos a dar a volta aos muros, já que nos sentimos impotentes para acabar com eles?

Querem os judeus mais crentes, daqueles que entendem que só é verdade o que os seus textos religiosos acolhem, que aquele muro onde vão carpir mágoas seja o que resta do lendário Templo de Salomão, pouco lhes importando que a Arqueologia diga que não é verdade, que se trata do que sobrou de um antigo templo romano dedicado a Júpiter. Pode bem ser que esta devoção equivocada tenha sido (e ainda possa ser) espiritualmente terapêutica para estes crentes, coisa que eu não creio, embora caiba lembrar aquele dito oriental de que pouco importa se um gato é branco, se é preto, é preciso é que apanhe ratos.

Querem os cibernautas mais devotos da NET, mesmo que descrentes da vida, que os seus protestos raivosos, as suas violentíssimas (mas passageiras) indignações e outras provas de vida virtual demonstrem Urbi et Orbi o quanto estão atentos e não perdoam comportamentos fora do manual.

Todos os muros – ou não seriam – servem para separar e onde há separação há ódio. Ódio do judeu mais fundamentalista à gente gentio (os goy); ódio do cibernauta ao mundo e à vida. O judeu atribui humanidade a todos os seus; o cibernauta só a si próprio, porque o mal do mundo é os outros não serem como só ele é…

Ele, com o seu computador e a sua raiva, é uma versão pós-verdade do martelo das bruxas. É por isso que martela nas teclas e na pachorra de que está do outro lado do muro.

quinta-feira, 11 de maio de 2017

A LIBERDADE EM GLOBALIZAÇÃO

V. Novas, 11 de Maio de 2017

Substituída que foi pela conveniência, a moral havida encontra-se moribunda, nesta nossa sociedade que, para o bem e para o mal, levou o primado do indivíduo ao trono da liberdade. Provavelmente, a conveniência sempre foi a regra de qualquer moral, em qualquer contexto e em qualquer tempo, nós é que temos o mau hábito de fazer projecções idealistas, confundido o que é com o que pensamos ser, ou que deveria ser.

Mas deixemos isso, falemos dos dias de hoje, onde o indivíduo pode tudo sem quaisquer pruridos de moral, nem polícia à perna, desde que não atente contra as conveniências implantadas, todas elas de carácter mercantil, que é a nova sacralidade da religião global chamada de mercado.

O indivíduo pode tudo, e o estado moderno, que substituiu a velha sacralidade por esta mais actual, que o dinheiro benze, pouco se preocupa com o que o cidadão pensa ou a moral que usa, preocupa-se sim é com os grãos de areia que possam afectar a engrenagem cada vez mais fria e cada vez mais distante.

O pensamento único instalado tornou-se o contrário do que dantes se entendia por pensamento, é um rolo compressor invisível que mata qualquer veleidade de pensar fora dos carris do massivamente aceite, pelo que o primado do indivíduo nada tem a ver com ser único e irrepetível, mas com o número fiscal (ou outro) de que cada um seja réu. Finalmente temos o indivíduo-massa, o indivíduo clonado, auto-satisfeito por julgar que faz o que quer, que é livre. Este indivíduo perdeu a capacidade de querer, apenas deseja o que o pensamento único lhe agrafou aos instintos. O homem-massa dá lucro, é útil, vota e paga impostos. Pode, e dantes não podia, injuriar qualquer capataz do sistema, porque isso não prejudica o mercado, antes pelo contrário, e serve de válvula de compressão, para evitar problemas na caldeira.

É evidente que o que eu digo aqui só merece o desprezo dos crentes e a indiferença dos que pensam como é suposto que devam pensar e controlam por procuração todos os modos de pensar. A maioria chamará a este desmundo progresso, louvará as instituições, reafirmará que isto é assim porque não pode ser de nenhuma outra maneira, é a maturidade geral das sociedades modernas, rumo à globalização e à diluição do estado. Acreditar-se-á até num pronúncio de novas e promissoras formas de relacionamento. Engano.

O estado dilui-se no que concerne aos interesses dos mais frágeis e fortifica-se no enaltecimento e rédea larga para os crupiês e premiados do jogo. Paradoxalmente, o estado é hoje mais poderoso e omnipresente do que nunca e leva os seus instrumentos de propaganda e reprodução do sistema ao requinte do reflexo condicionado, infalível e consentido, numa lavagem aos cérebros que torna os indivíduos completamente descaracterizados, previsíveis, apáticos e descartáveis. Ou seja, o primado do indivíduo tornou-se o primado do indivíduo-padrão, usado na clonagem do homem-massa.

Abdul Cadre

sexta-feira, 5 de maio de 2017

O OITO E O OITENTA

V. Novas, 5 de Maio de 2017

Dizia Sócrates que o verdadeiro conhecimento vem de dentro. Penso que se referia à sabedoria, não ao conhecimento meramente utilitário, não ao acumular de saberes, porque estes, julgo eu, vêm de fora. E não ponho sequer de fora a ideia platónica de que aprender é recordar, porque entendo tais recordações, não como de coisas, mas do impacto das coisas.

Sabedoria e conhecimento podem comparar-se com fé e crença; fé e sabedoria vindo de dentro e conhecimento e crença vendo de fora. Aceitando-se isto, poderíamos acrescentar que o que vem de dentro é irracional – a-racional, se se quiser –, já que escapa ao domínio da razão, enquanto que o que vem de fora, por mais estúpido que seja, é racional, porque se o não fosse não era apreensível. Do que se aprende e do que se acredita é pelo jeito que dá que se acumula; elimina-se da crença e da aprendizagem aquilo que a sabedoria nos faz entender como inutilidades, como peso morto.

O saber utilitário faz-se de experiência – só sabemos verdadeiramente o que experimentamos –, e, ao tornar-se de aplicação geral, submete-se ao colectivo, passa ao domínio do colectivo. Eis assim que a transmissão destes saberes se faça melhor em grupo, onde a imitação tem um papel relevante. De tais saberes, cuida-se da qualidade em grupos restritos; da quantidade ou massificação em grupos alargados.

Entre o pequeno grupo e a multidão joga-se dos saberes a qualidade preservada ou a sua degenerescência.

Se é em grupo que melhor se aprende, deve perguntar-se da importância do seu tamanho. Parece ser indiscutível que um grupo restrito é mais funcional do que um grupo alargado; estes geram ruido e dispersão, aqueles são mais fáceis de motivar. Mas é difícil aquilatarmos do número mais conveniente de pessoas para integrar um grupo suficientemente motivado. Da minha experiência, diria que não menos do que cinco e não mãos do que 15 indivíduos. Grupos demasiado pequenos são permeáveis aos conflitos de personalidade, grupos demasiado amplos são permeáveis à dispersão.

segunda-feira, 24 de abril de 2017

DA IRRELEVÂNCIA CRÍTICA

V.N. 24 de Abril de 2017

Uma sociedade sem crítica é uma estufa propícia ao culto das falsas memórias, dos falsos valores e da acefalia, mas uma sociedade que em vez da crítica usa a má língua, como seu sucedâneo, o dizer mal por dizer mal, os ódios de estimação e os recados e recadinhos, não é melhor. Pode até ser pior.

Num tempo de relativismo moral, factos alternativos e verdades de geometria variável, faz muita falta aquela velha postura do ridendo, castigat mores. Uma crítica bem-disposta das nossas fraquezas individuais e colectivas, sem azedumes, integradora das diferenças, irreverente sem ser ofensiva. Isto exige uma grande capacidade de nos criticarmos a nós próprios, para nos não colocarmos numa nuvem doirada para assombração dos mais, sem o que toda a crítica será irrelevante.

Esperando o melhor de tudo isto, habituei-me a ver com regularidade um programa televisivo de crítica à actualidade social e política, que habitualmente era apresentado de forma bem-humorada, e bastante bem informada. Refiro-me ao Eixo do Mal.

Mas tudo envelhece: nós, as ideias, as coisas e o mundo. Talvez seja desejo de consolação dizer-se que o envelhecimento nos traz sabedoria. É preciso que se prove que assim seja, pois que até o vinho corre o perigo de se tornar vinagre, e não o néctar que se esperava. Mais do que à sabedoria, os velhos, pela nostalgia, tendem a render-se aos modelos a que se habituaram, eventualmente como consequência das dores reumáticas. Para eles, tudo o que não encaixa nos seus conceitos esclerosados – nos seus preconceitos –, nos seus hábitos de dizer o que se espera que digam, é liminarmente repudiado. Limitações da formatação mental. Perde-se a imaginação, esmorece o discernimento e só sobra o vinagre e as respectivas moscas. Terá isto a ver com o «eixo»?

A velhice traz também uma grande carga de pesporrência, esgrimida como uma auto-suficiência advinda da experiência – justificam-se os velhos –, confundindo-se assim experiência com a perícia que o treino dá, porque experiência não vem do que se repete vezes sem conta, mas do muito que de novo se faz, como quem rega planta.

Entendo que os comentadores axiais estão velhos, muito velhos: sobra-lhes vinagre e falta-lhes o azeite. Todos eles. Digamos que a nota mais negativa vai para a plumitiva e caprichosa Clara Ferreira Alves, que fala em voz on e em voz off de forma torrencial e redundante, num discurso de intolerância e autoconvencimento que pede meças às velhinhas que lêem o Correio da Manhã ao pequeno-almoço. Um pouco de humildade intelectual ficava-lhe bem; menos azedume apocalíptico era bom para todos.

No último programa (22/04/17), ocupado quase todo com o não assunto de fabricação mediática do sarampo, sarampelo sete vezes vem ao pêlo, olhei para aquelas alminhas e pensei: tenho de mudar de lentes. Meu Deus, meu tudo, que até nas pernas és cabeludo: Quatro Diáconos Remédios!?

É evidente que as liberdades individuais não podem ser absolutas, quem assim as entender procure uma ilha deserta, se ainda houver. Mas, francamente, quando oiço falar em proibir e em obrigar – também estou velho, é o que é – fico todo arrepiado. É que eu sei que atrás da orelha de cada português há um Salazar que murmura, e tenho muito medo dos que têm o ouvido apurado.

O que será que os axiais não perceberam, no caso da falta de vacinação? Que a jovem falecida, mesmo que a vacina fosse obrigatória, estaria sempre isenta, por razões de intolerância? Que metade dos contaminados tinham sido vacinados?

E ai, o Marques Lopes, a confundir conhecimento com ciência e esta com verdade! Naquele momento, Heisenberg e Popper deram três pinotes na tumba…

No mar enorme que é o conhecimento – e há conhecimento que é mau e falso – o conhecimento científico é apenas uma praia com coqueiros; para apanhar os cocos é preciso trepar. Quando se trepa, nem sempre há cocos – princípio da incerteza – e quando os há, melhor serão os que estão para vir: princípio do falseável.

Meu caro amigo, tenha cuidado com o empirismo, por mais evidente que seja ser ele a fonte do conhecimento – Duarte Pacheco Pereira não diria melhor – mas consulte-se o dicionário, porque um dos significados de empirismo é precisamente o que tanto o incomoda: a charlatanice.

Fico à espera de saber, de forma não científica, se o Eixo quer cair em graça ou ser engraçado. Eu preferia que fosse crítico, mesmo que a graça fosse pouca, mas bem-humorado e pedagógico. Pelo caminho que vai, está a tornar-se irrelevante, uma coisinha para encher um buraco na grelha.

ABDUL CADRE

segunda-feira, 3 de abril de 2017

A IMORALIDADE DA MORAL

Histon, 2 de Abril de 2017

Andava eu no secundário, e era um tempo em que se impunha à miudagem uma disciplina indecente a que os ditadores da formatação ideológica e da castração do espírito crítico chamavam «Religião e Moral». Creiam que era uma coisa medonha que chegava a ser repugnante. Imoral, pode dizer-se.

No entanto, veja-se o paradoxo, isto proporcionou alguns resultados positivos, que não estavam previstos nas intenções dos cruéis mandadores. Dava-se o caso de alguns dos jovens menos formatáveis criarem anticorpos de tal ordem que tudo o que ali se dissesse, por verdade que fosse – e é claro que não era – logo era tido por mentira.

Num dos anos, nesse tempo de tortura, aparecia-nos a dar aulas um padre, que era uma caricatura digna de ilustrar A Velhice do Padre Eterno. Baixote, a condizer com o seu próprio carácter, todo vestido de gato pingado, tinha tonsura e guarda-chuva e começava todas as aulas com um peditório, ou antes, uma extorsão aos pobres desgraçados de quantos tostões pudesse. Era para a Conferência de São Vicente de Paula, dizia ele, e quando a colheita não lhe parecia suficiente, por critérios que só ele sabia, berrava desalmadamente que éramos todos hereges, comunistas, pagãos e outras coisas mais.

Um dia, um mal-avisado gaiato lembrou-se de dizer que, mesmo que tivesse, não dava nem um tostão para aquilo, dado não ser católico e os pais já terem requerido autorização para não assistir àquela catequese.

De que te havias de lembrar, rapaz!

Se ainda fores vivo – isto foi há tantos anos! – estarás de certo lembrado das chapeladas que apanhaste no lombo e dos impropérios que ouviste…

Bom foi o guarda-chuva, devido a tanta raiva, ter-se partido. Melhor ainda foi ter chovido a cântaros e o cangalheiro de Cristo, se ter visto obrigado a regressar ao seu abrigo cavernoso que imaginávamos como próprio de qualquer lobisomem, com a sua encharcada farda de luto colada ao corpo.

Uma contínua, que muito lamentava a nossa sorte, vendo a nossa satisfação pela molha do padre, chegou ao pé de nós e disse: «não fiquem assim tão satisfeitos, porque erva ruim não morre».

Nós não desejávamos a morte da aventesma, bastava-nos que partisse uma perna.

domingo, 12 de março de 2017

DEIXEM-ME TER UMA BIRRA

 

A NET, na sua vertente «redes sociais», é uma espécie de correio da manhã, sem hora de fecho da redacção, mas maior, as mentiras é que são do mesmo tamanho. Tal como as manchetes excitantes do CM raramente correspondem à verdade, assim é com a NET: o hoax substitui a notícia. Tal como um crime (no CM) se divulga, repete e comenta semanas a fio, e se recorda depois a quando do julgamento, para que todos pensem que é o fim do mundo, se excitem e tremam de medo, também a NET mói e remói tudo o que excita, dando de comer, na expressão do Papa Francisco, aos que se alimentam de excrementos.

A NET é tal qual como uma taberna, só que enorme, global e sem taberneiro designado, porque somos todos nós que servimos os copos com que nos embebedamos uns aos outros; bebemos, naturalmente, da zurrapa a que vínhamos habituados de outras andanças. Quando pedimos bebidas finas ninguém nos sabe indicar onde fica a garrafeira.

Os maus hábitos aqui são os mesmos de qualquer taberna castiça, a má-criação é a mesma, as consequências é que são mais suaves, as naifas não são de aço, forjam-se nas injúrias, calúnias e impropérios.

Então, como atrás dizia, na taberna (ou tasca) internética onde não há taberneiro de serviço, há vinho mas não há petisco. Esta taberna é realmente especial, não apenas pelo tamanho, mas porque não há ASAI que por aqui passe a passar multas e a mandar lavar o chão. Como em todas as outras, muito se grita, cospe-se no chão e para o chão se atiram as beatas. Quem assim não proceda é betinho, tonto ou coisa que lhe valha.

Na taberna tradicional podemos pedir ao taberneiro que ponha na rua o tipo que está a vomitar para cima de nós; aqui, não, porque os taberneiros – já o dissemos – somos nós todos a bater nas teclas como quem avia ginjinhas.

A Internet é um belíssimo instrumento de impensamento e despensamento único, por mais que nos iludamos de pluralidade. É um apurado instrumento de infantilização e é tão bom nisto que até nos permite ter birras.

quarta-feira, 8 de março de 2017

SEXO LIBERTINO E PURITANISMO

VN 08 MAR 2017

A propósito de um jogo sexual muito praticado em Espanha, entre os jovens, ver em http://www.dn.pt/sociedade/interior/jogo-do-cais-a-brincadeira-sexual-que-esta-a-preocupar-as-autoridades-5595201.html, algumas jovens, que quero crer bem-intencionadas disseram coisas assim:

«Para mim isto é assustador... e ainda mais é quando há pessoas que nos comentários à notícia defendem que isto é a liberdade sexual dos jovens e que se deve pactuar com isto... mais uma vez não se olha para estas situações como o princípio da exploração sexual... da exploração humana...»

«É horroroso. O conceito de "liberdade" completamente deturpado... é triste que haja jovens a crescer assim... com a noção de que a "liberdade" que podem escolher é a liberdade de serem objectos sexuais..»

Estas visões acerca do «desvio» dos tais jovens são tão distorcidas, tão tipo Facebook, tão carregadas de um puritanismo saloio – chegou-se mesmo à comparação com a pedofilia – que me vi obrigado a responder assim:

Numa sociedade promíscua não se pode esperar que os jovens o não sejam. Mas não se preocupem: ser jovem é doença passageira que não precisa de cuidados médicos, basta esperar pelo reumático. E não vale a pena assustarmo-nos nem usar os chavões da moda. Por exemplo, nesse tal jogo badalhoco ninguém é objecto sexual, machos e fêmeas «brincam» livremente e em igualdade. Também não vale a pena perorar sobre liberdade, porque a liberdade não é dizer o que nós julgamos que os outros devem fazer. A liberdade é acertar e é errar. Não é ilimitada, como é óbvio, mas não pode ser limitada apenas porque sim. Mas, nestes casos de libertinagem, seria bem melhor tentarmos perceber do porquê. Por exemplo, só na cidade de Madrid há mais clubes privados de trocas de casais do que escolas e associações culturais em conjunto. O espanto (e o susto de muita gente) deriva de só se assustarem e espantarem quando as redes sociais e os media dão o lamiré. Se fossem espreitar a vida, deixavam de se assustar e de se espantar. Estas coisas, há uns anos atrás, eram quase exclusivas das classes «altas», hoje, com a globalização (digamos assim) chegou às classes populares. É apenas um fenómeno quantitativo, não é qualitativo. E descansem, o mundo não vai acabar, antes pelo contrário, vai crescer. A lógica maior é a dos interruptores, umas vezes estão para cima e outras estão para baixo. É a vida.

O mundo não enlouqueceu. Está como vem sendo há muito tempo. Não havia era NET para mutuamente nos assustarmos. Até parece que esta gente nunca leu a poesia lírica e satírica dos nossos civilizadores romanos, nem das orgias e bacanais da Antiguidade Clássica, nem das Fogueiras de Beltane, do mundo celta. Estas puritanas, que eu parto do princípio que são bem-intencionadas, protegem-se de todos os perigos nas suas sacristias e gostariam que todo o mundo fosse uma enorme sacristia.

Devemos falar de liberdade e devemos falar de educação e de formação. A liberdade não é nem pode ser uma concessão, mas de uma conquista e de um exercício, que não implica (nem poderia implicar) fazer coisas certinhas. Exercer a liberdade tem de ser acertar e errar. Quanto à educação e formação, pergunte-se aos pais, aos professores, às escolas, aos media, aos legisladores, etc. O que fazem, o que privilegiam, o que incentivam. Depois, quando se trata de sexo a conversa começa quase sempre envenenada e enviesada. Principalmente devido ao puritanismo e ao moralismo. Por fim, para afastar os sustos, devo dizer-lhes que a referida rebaldaria é tão antiga quanto a humanidade, não vinha é no jornal e, por maioria de razão, na NET. A minha adolescência foi há 60 anos e assisti a coisas dessas. E piores. Por isso, não se assustem, lembrem-se do que diz a Bíblia (no Eclesiástico): o que é já foi e o que será também já foi.

E tenham muito cuidado: tal rebaldaria nada tem de parecido com pedofilia, pois não há abuso nem coacção. Depois, não se trata de crianças, mas de adolescentes (e até de maiores). Acresce que, a partir dos 16 anos, não existem quaisquer inibições de relacionamentos sexuais consentidos, mesmo que com maiores. Podem enojar-nos certos comportamentos, mas não somos donos dos outros. Não estamos a falar de pessoas incapazes, nem de pessoas que obrigam outras a fazerem o que não querem. Estamos num campo muito sensível. Livremo-nos de moralismos e façamos uma peregrinação a Bertrand Russell e William Reich, sobre este assunto

UM OLHAR DE VIÉS

VN 08 MAR 2017

Convém lembrar aqui o que tantas vezes tenho dito: as ditaduras minoritárias fazem por transformar as maiorias em carneiros que se pastoreiam e tosquiam; as ditaduras de maioria, ditas democracias, fazem dos carneiros que balem mais alto chefes de rebanho, pregadores de redil a bem da tosquia e da boa lã.

Aquilo a que o vulgo chama democracia é apenas um sistema sufragista que não põe em causa os poderes fácticos. Neste sistema, o voto de um bêbado tem o mesmo valor do de um sóbrio; o voto de um assassino vale o de uma pessoa de bem.

É este sistema que permite os Trump e os Hitler. A sua característica é a glorificação do mau gosto, do mau cheiro e da rasteirice.

Os bem-pensantes, que em boa verdade o não são, apenas assim se julgam, usam e abusam, quando as coisas não saem do jeito que gostariam, da lamentação ferrugenta de que o povo não sabe votar. Ora, é claro que o povo sabe votar, é fácil, demasiado fácil: é pôr uma cruzinha num quadradinho; o que o povo não sabe é da inutilidade do seu voto; não sabe que com ele reza a impotentes santos de palha.

Um dos grandes problemas das análises políticas é a divisão povo/políticos, como se os políticos fossem extraterrestres e não emanações do povo, reflexos do que nele há de melhor e de pior. Depois, o que acontece é um fenómeno de retroalimentação que, quando no sentido do bem, conduz ao progresso, quando no sentido do mal à decadência.

A grande diferença entre os políticos efeitos e os cidadãos anónimos é que uns estão na montra e os outros não; uns estão perto da massa e os outros não.

Não é preciso lembrar o ditado popular – ou é? – de que a ocasião faz o ladrão. Sendo assim, nem os manetas se isentam, porque na ocasião usam os pés, na mesma lógica de que quem não tem cão caça de gato.

Combater o ladrão e não impedir a ocasião é trancas à porta depois de casa roubada.

Os políticos têm exactamente os mesmos defeitos do povo em geral a que pertencem, porque foi desse útero que vieram.

A indignação pelo mau comportamento de figuras públicas vem de sectores minoritários, porque se viesse de claras maiorias não haveria corrupção, toda a gente estaria atenta.

O abastardamento social que caracteriza as sociedades decadentes é bem possível que seja uma necessidade, pois que sem estrume não se criam novas e viçosas plantas.

Quando os populares chamam ladrão ao político que elegeram e não impediram que roubasse estão apenas a esconjurar os seus próprios fantasmas, os seus esconsos pecados. Atente-se também na permissividade expressa no célebre e estafado slogan do rouba, mas faz.

Quem vota, não vota por raciocínio, por conhecimento, mesmo que ligeiro, de qualquer programa eleitoral, vota por identificação.

Com certeza que haverá coisas que o povo odeia e que poderão condicionar o seu voto no sentido do «voto neste para aquele não se ficar a rir». Não será má vontade dizer-se que na lista daquilo que o povo mais odeia não estará nem a violência nem o roubo. É verem-se os resultados das votações em gente pouco recomendável. O que o povo odeia sobretudo é a verdade, a liberdade e o bem-estar alheio.

Quem vota exprime – assim como quem bota vela no altar – o desejo de boa vida com pouco esforço. Acontece que os «pobres» eleitos, não podendo dar disto a todos, servem-se do ditado popular, que os eleitores sabem de cor, que quem parte e reparte e não fica com a melhor parte ou é tolo ou não tem arte.

AS POSTAGENS E OS INDIGNADOS

VN 08 MAR 2017

Detesto o que quer que seja em data certa. Sobretudo detesto o dia dos pobrezinhos, o dia da mulher, o dia da criancinha, o dia dos indignados…

São exercícios de lavagem de consciências. Tem muito a ver com a crítica dos evangelhos aos fariseus, que davam esmola de modo que todos vissem. Esta esmola dos poderosos – este dia de qualquer coisa – é de tal modo farisaica que não se entende como os pseudo-beneficiados se sentem tão contentinhos.

Que bom seria podermos cantar com a Lena D'Água «todo o dia era dia de índio».

Mas a gente fica pacificada, coração ao alto. Há um dia – ou mais – para sermos todos bonzinhos. Que pena o ano ter tantos dias e nem todos se prestarem para treinarmos a bondade que não temos, se não houver dia para isso.

Indignem-se, dizem as correntes de mensagens electrónicas que nos enchem a caixa do correio. E a gente faz forward, comodamente sentados. A superficialidade dum tempo sem tempo, a indignação digital, o carpir como quem mia na esperança de receber um carapau, a solidão disfarçada na ilusão de que o mundo está à escuta do que dizemos, falar para não estar calado, exigir dos outros a santidade banal e pós-moderna de enfeitar o mercado das palavras...

Vamos apodrecendo na vida adiada que nem a esperança concede. Esperamos sentados. Indignamo-nos sem consequência. Toda a nossa raiva se esgota quando agredimos o teclado e premimos o rato como se o estrangulássemos.

Olho as campas rasas do imenso cemitério do Facebook e só me ocorre perguntar: há por aí algum corpo que ainda tenha sinais de vida?

Um cadáver levanta-se e vai à janela. Uma velhota tenta atravessar a rua, arrastando um cão pela trela. Um automobilista apressado buzina-lhe ferozmente e atira-lhe duas bocas foleiras.

O cadáver deixa o mundo como está e volta indignado para o teclado.

Será que isto que estou a dizer pode motivar indignações avulsas nas redes sociais? Não creio, até porque não comecei este escrito com a ordem habitual do indignem-se. E se não houver essa ordem, ou esse lamiré, nada feito.

De qualquer modo, as indignações postadas em forwards da NET pouco sensibilizam as pessoas verdadeiramente sensíveis. Talvez eu nem sequer pertença a esse pequeno número, mas o facto é que também pouco me sensibilizam, mesmo que às vezes me incomodem, num incómodo assim como ter piolhos. Mas tal como há remédios extremamente eficazes para nos livrarmos dos piolhos, há nos nossos teclados uma tecla tão boa quanto o Quitoso, a tecla DELETE.

Quem sabe usar o delete não é atingido pelas indignações de faz de conta.

Sabem uma coisa? Perdi a capacidade de me indignar. Os indignados têm-me esgotado a paciência e a sua hipocrisia gela-me o sangue. Sinto-me um crocodilo fora de água e as nuvens toldam-me o sol.

Mas não posso deixar de me sentir incomodado quando oiço os vociferantes de pantufas quentes a arengar contra refugiados e emigrantes, no seio dos quais, dizem eles com manha, podem vir terroristas. Alguns dos vociferantes têm-se em tão boa conta, sentem-se tão acima de tudo e de todos que discursam acerca da subhumanidade que decretam para quem sofre, foge e não veste bem. Tais inquisidores bateriam palmas a qualquer solução final, mas não o declaram porque, por enquanto, parece mal…

Vão-se indignado com coisinhas de forward e de delete e nem querem ouvir falar que descendem – eles e todos nós – de violadores, antropófagos e homicidas; passam adiante as páginas de que não gostam dos manuais onde se conta a História da Crueldade Humana.

A compaixão não é o seu forte e a crueldade não lhes sai do íntimo.

Ai, quanto eu gosto do Pessoa! Quanto eu entendo e comungo da sua aversão à companhia. «Que maçada, quererem que eu seja de companhia», eu que não me indigno com quanta coisa que postiçamente se usa para dizer ao mundo e à cidade que estamos vivos e temos sentimentos que extravasam o nosso umbigo, e temos compaixão, embora apenas pela ordem da batuta. Conforto é o que queremos, esconjurar a dor ainda mais.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

TRUMP É LOUCO, EM QUE SENTIDO?

Trump poderá ser um doente do foro psiquiátrico, mas não um louco no sentido que alguns críticos lhe dão, e assim o enaltecem. Aliás, todas as críticas a Trump, no geral, são mal dirigidas, pois fazem-se no sentido de diabolizar os seus apoiantes populares, de que resulta naturalmente mais apoio para o dito cujo. Steve_Bannon_2010

Note-se que aquilo de que o acusam é precisamente aquilo que o catapultou para o poder.

Se não se perceber qual é o vento que sopra no mundo não se vai perceber o fenómeno Trump, que é apenas a estrela de um show destinado a entreter o pagode e desviá-lo do cerne da questão. A coisa será mais perceptível quando vários países da Europa entrarem na mesma deriva.

A estrela deste show poderá deitar fogo ao palco? Claro que sim.

Aliás, o seu mentor, o neonazi Steve Bannon, para além de obras de ficção, tem artigos «filosóficos» e «proféticos» que explicam bem o que pensa e o que quer. A sua visão apocalíptica cristã é simétrica da visão apocalíptica salafita do Daesh. A sua teoria do caos e a proposta de criar condições para uma guerra entre a China e os EUA, dentro de 5 a 10 anos, deviam assustar e não assustam, porque os meios de comunicação estão mais motivados para o primarismo de colar etiquetas. O homem é louco e está o assunto arrumado, vamos divertir-nos com o show encenado por quem sabe bem o que está a fazer.

Quando os turcos tomaram Constantinopla, os dirigentes da cidade estavam reunidos para resolverem o grande problema do sexo dos anjos e da composição das suas asas...

Os poderes fácticos do mundo terão chegado à conclusão de que já podem começar a dispensar os políticos e mandar gerir as nações pelos seus delegados administrativos. O povo já tem a lição bem aprendida: os políticos são todos uns malandros e os gestores é que sabem gerir tudo de modo a que tudo dê lucro; o estado só serve para cobrar impostos e os funcionários públicos são uns inúteis. O estado deve ser eliminado porque tudo pode ser feito sem ele, barato, bem e depressa.

Onde é que o povo aprendeu isto? É evidente que aprendeu nos meios de excitação social. Curioso, foram os meios de excitação social que criaram Trump – o Dr. Frankenstein e o seu monstro – e é contra eles que o Trump volta baterias. É a criatura a querer estrangular o criador.

Os utopistas têm olhado o povo como algo sacrossanto. Voz do povo é voz de Deus. Que tontice! Se existisse o Diabo, diria eu que a sua voz é a do Trump e é a do povo. Dá vontade de rir haver jornais que primam pela mentira e pela calúnia tomarem o papel de defensores da verdade, criticando o Trump. O Trump mente, como mentem os jornais e como o povo mente. O povo odeia a verdade e, no sistema sufragista, só os mentirosos ganham o voto popular.

E entrámos numa nova fase da implementação do caos proposto por Steve Bannon. Os tribunais já ilibam quem mente, quem injuria e quem calunia justificando-se com o direito à liberdade de expressão. Bem recentemente, um jornalista bem conhecido pelas suas posições de extrema direita e admirador confesso do Trump, e que no nosso meio se destaca por promover conspirações, foi ilibado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem das calúnias que teceu em relação a uma figura pública. Os doutos cavalheiros determinaram que a liberdade de expressão é mais importante do que o direito ao bom nome,

É assim que vamos a caminho do caos. E acreditem: isto não é inocente. Mas o povo gosta, isto é, está habituado. Haverá quem não saiba o que nos ensina a Psicologia, que o gosto é apenas um hábito?

sábado, 11 de fevereiro de 2017

ILLUMINATEN E ILlUMINATI

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No seu livro, “Anjos e Demónios”, Dan Brown evoca os Illuminati, uma sociedade secreta cujas origens remontariam ao século XVI e que reuniria eruditos cujas teses científicas tinham sido repudiadas pela Igreja. Segundo Dan Brown, o astrónomo e matemático Galileu (1564-1642) tinha sido um dos membros mais destacados desta sociedade. Perseguidos pela Igreja Católica, os Illuminati tinham-se espalhado pela Europa, misturando-se com místicos, alquimistas, ocultistas, judeus ou muçulmanos, infiltraram-se na Maçonaria. Sempre segundo o autor de “Anjos e Demónios”, esta sociedade secreta trabalharia na destruição da Igreja Cristã. No seu livro, põe em cena uma conspiração orquestrada por ela.

Se bem que existiu uma organização cujo nome se parece com o citado por Dan Brown, a sua história não é essa. O grupo que lhe serviu de modelo é o dos ILLUMINATEN (que não Illuminati), e a sua existência não remonta ao século XVI, mas sim ao final do XVIII, ou seja cerca de cento e cinquenta anos depois da morte de Galileu.

Os ILUMINATEN, mais conhecidos pelo nome de Iluminados da Baviera, foram uma irmandade que foi criada em Maio de 1776 por Adam Weishaupt (1748-1813), professor de Direito na Universidade de Ingolstadt, na Baviera. Antigo aluno dos jesuítas, ficou marcado pela forma como estos lhe ensinaram religião, utilizando una espécie de “rigidez metódica” destinada a impor uma devoção de fachada e vazia. Desenvolveu daí uma grande aversão pela religião e esforçou-se em combater o obscurantismo religioso, unindo-se ao Iluminismo. Foi com este espírito que fundou os ILLUMINATEN, uma sociedade secreta que não tinha vocação iniciática, mas sim um objectivo completamente subversivo.

A doutrina Illuminaten

A doutrina dos ILLUMINATEN inspira-se em Rousseau. Prega o igualitarismo e um racionalismo hostil à religião. A luz que buscam não é a da espiritualidade ou a da iniciação, mas sim a da razão, a do Iluminismo que marca o século XVIII. Adam Weishaupt consegue apenas reunir uma dezena de membros à sua volta. Constatando o pouco êxito da sua empresa, deu aos ILLUMINATEN uma forma maçónica para seduzir novos adeptos. Em 1782, tentou inclusive criar uma instituição destinada a federar a maçonaria alemã com o fim de “curá-la da teosofia” e aproximá-la do racionalismo. A sociedade dos ILLUMINATEN estendeu-se então pela Áustria, Boémia y Hungria, e infiltrou-se definitivamente na Maçonaria.

Nos finais do século XVIII, a Maçonaria alemã estava dominada pela Estrita Observância Templária e a Rosa-Cruz, dois grupos muito vinculados ao cristianismo por um lado e à espiritualidade mística por outro. Estos dois grupos, em particular os Rosacruzes, pressentiram rapidamente o perigo que representavam os ILLUMINATEN, que pretendiam reformar a sociedade instaurando o ateísmo. Em 11 de Novembro de 1783, a loja dos Três Globos de Berlim lançou um anátema contra os ILLUMINATEN, aos quais acusava de querer minar a religião cristã e fazer da Maçonaria um sistema político.

Por sua parte, as autoridades políticas sentiram-se também ameaçadas, já que Weishaupt queria apoderar-se também da monarquia. Para pôr fim a estas manobras, em 22 de Junho de 1784, o príncipe Charles Théodore, eleitor de Baviera, emitiu um édito ordenando a dissolução de toda a sociedade secreta. Nos princípios do ano 1785, Adam Weishaupt foi molestado. Destituído primeiro da sua cátedra universitária, foi expulso de Baviera. Então os ILLUMINATEN foram reprimidos e deixaram de existir depois de 1789.

Uma lenda romanceada

Apesar da brevidade da sua existência, os Iluminados de Baviera conheceram uma formidável posteridade novelesca, que começa nos finais do século XVIII com obras contra-revolucionárias, como o Ensayo sobre a seita dos Iluminados (1789) do marquês de Luchet, ou Memórias para servir a historia do jacobismo (1797-1799) de Augustin Barruel. Estes autores vêem na Revolução uma conspiração contra a religião e a realeza, dirigida pela Maçonaria, e em particular pelos ILLUMINATEN. Esta tese, muitas vezes contraditada pelos historiadores, conhece sem dúvida os favores dos que sustentam as teses conspirativas. Esteas últimas, basados na teoria da conspiração, extraem sua eficácia devido a que esta teoria “suprime a casualidade, os processos históricos, as imperfeiçoes humanas e faz crer que tudo é desejado, que há responsáveis únicos das desditas do mundo”.

Antes, falava-se da conspiração judeu-maçónica, hoje isto se atribui a outras minorias. É sempre necessário encontrar bodes expiatórios para o mal-estar de uma época…

Como conclusão, pode dizer-se que se é bem certo que os ILLUMINATEN foram pouco recomendáveis, devido à sua propensão para conspirar contra os poderes religiosos e políticos existentes, todavia têm apenas uma distante relação com os Illuminati da novela de Dan Brown.

PS:

Este artigo, originalmente publicado na página da AMORC-Espanha (http://www.amorc.es/iluminados-e-illuminati/), é aqui vertido para português por Abdul Cadre, com a devida vénia.