segunda-feira, 22 de outubro de 2012

O TRABALHO E A MISÉRIA

Vendas Novas, 23 de Outubro de 2012

QUANDO trabalhar significa sermos conduzidos à miséria e votar é escolher quem nos vai ao bolso, é o regímen, por mais juras democráticas que faça, que se encaminha para a total deliquescência, enquanto o passado que se vinga do presente.

Quando o moralismo substitui na política a justa gestão da riqueza da nação e o justo arbítrio dos interesses para a salvaguarda da coesão social por apelos ao sacrifício redentor, temos uma nova religião instituída que prescinde do céu e nega qualquer recompensa aos bem-comportados.

Quando é assim, o povo deixa de ir à missa e só paga o dízimo sob tortura. Deixa de distinguir Deus do Diabo.

Mas o povo merece isto, porque o povo merece sempre aquilo a que não se opõe. Mesmo que muita gente grite nas praças das cidades, a maioria não grita, fica em casa a embirrar com a família, ou faz promessas aos santos dos velhos hábitos de esperar, porque cada um sabe de si e só deus sabe de todos.

Por maus hábitos e muita desatenção, os que esperam dos céus o que os céus não podem dar, veem que aqueles a quem batem palmas enricam e que quem mais aplaude mais empobrece.

Não é uma maldição dos céus, é a justa paga da apatia; injustos seriam os céus se se deixassem comprar por quem rasteja e acende velas, como quem mete cunha a autarca bonacheirão.

Dar ao pedal é que é, para que a bicicleta se mova. Caso contrário, é esperar que o D. Sebastião desembarque para nos salvar. Não sei é como, pois deve estar bastante desconjuntado de ossadas.

Ou isso, ou vir gente armada até aos dentes partir-nos os dentes e dar a cada um meia sardinha.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

O QUE TIVER QUE SER ASSIM SERÁ

Vendas Novas, 8 de Outubro de 2012

DIZEM os populares que «o que tem que ser tem muita força», o que implica acreditar no determinismo. Dá-se até o caso de astrólogos e adivinhos dizerem que o destino está escrito nos astros, talvez por respeitarem mais os calhaus, que são os astros, do que o espírito, a vontade e a imaginação dos humanos e dos deuses.

Eu, que me habituei a acreditar que para quem crê no presente todos os destinos e todos os futuros são possíveis, por vezes fico perplexo.

Há muitos anos, conheci uma jovem que, escorregando no passeio duma rua da antiga Lourenço Marques, fraturou uma perna, coisa que acontece a muita gente. Levada para o hospital, foi engessada – coisa normal – e nos dias que se seguiram não sossegou com dores. Dores cada vez mais fortes e no hospital a dizerem-lhe que estava tudo bem. Depois, começou um cheirinho mau. Foi internada, operada e por ali ficou mais de um mês. Quando teve alta, sentia-se bem e quase não precisava das canadianas para andar. Isto até sair à rua, acompanhada do namorado e dois familiares. Aí, ao atravessar na passadeira, um carro mal governado projetou-a vários metros adiante. Fratura exposta na mesma perna e o hospital ali mesmo à mão. Voltou tudo ao princípio e a perna nunca ficou totalmente boa.

Lembrei-me disto ao ter conhecimento da morte prematura da ex-jornalista Margarida Marante, alguém a quem o mundo e a vida pareciam estender passadeiras triunfais e os fados, um curto-circuito na alma ou lá o que foi quiseram provar que o que tem que ser tem muita força.

Estava a escrever estas linhas e dependura-se-me na pantalha televisiva aquele senhor que tem a mania que é barítono e se atirou ao pote como quem pensa que o mel vai acabar – neste pormenor, provavelmente terá razão –; um senhor que é alcunhado, entre outras coisas, de primeiro-ministro, embora não seja esta a alcunha que o povo mais aprecia. Imaginei-o a dizer: «O país estava à beira do abismo, mas comigo deu um grande passo em frente». Estou ciente e consciente que ele não disse isto. Fê-lo, na verdade, mas não o disse. O que ele disse, não sei, quando ele fala já não o oiço. Aliás, não merece ser ouvido. A única coisa que mereceria ser ouvida era uma confissão pública do mal que fez a este país. Tirar a mão do nosso bolso e ir-se embora é que era.

Tinha acabado de ver o Ministro dos Impostos e, ao meu lado, alguém perguntava: «Porque será que o homem fala tão devagar?». Procurei esclarecer: «Sabe, amigo, não está ali um ser humano, trata-se de um cyborg. Sabe o que é um cyborg? Um cyborg é um ser vivo – chamemos-lhe assim – feito com tecidos humanos, de aparência humana, mas de natureza cibernética…

– Pode ser – voltou o outro à carga – mas por que é que fala tão devagarinho? Pensa que somos todos estúpidos, é?

– Não, amigo, ele fala assim porque está a fazer tradução simultânea. Tem um implante no ouvido que lhe permite ouvir permanentemente as ordens do Wolfgang Schäuble, que foi quem o mandou fabricar, e que é ministro das finanças na Alemanha…

A Alemanha está em vias de ganhar a guerra interrompida com a morte do homem do bigode ridículo. A sua substituta, sem precisar de tanques de guerra, basta-lhe o marco alcunhado de euro, gaseia-nos a todos. Podíamos atropelar a substituta do tal senhor, torpedear-lhe a moeda, despedir os empregados dela que aqui temos, mas não sei porque o não fazemos.

Por mim, faço votos que aconteça à Alemanha o que sempre lhe tem acontecido ao longo da História. Que se prove que o que tem que ser tem muita força.

E que a gente se safe, como é costume. Mas não estou nada, mesmo nada seguro.