segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

RESPOSTA A UMA AMIGA, INTERROGANTE DA MINHA LOUCURA.

 

Muitas vezes me referiram um certo personagem que teria dito «quanto mais miséria mais obediência». Não digo o nome porque o não pude confirmar sem equívocos, mas como a frase vale por si, aqui está, e penso que muitos políticos a têm gravada no subconsciente, como cartilha. Neste dizer, quero entender miséria não só material, mas sobretudo cultural e comportamental. A gente habitua-se a comer pão e depois diz que gosta de pão. Habituamo-nos a dizer mal e passamos a gostar de dizer mal. Se nos habituarmos a desenvolver o espírito crítico, desenvolveremos as formas do hábito e do gosto. Talvez os amigos à nossa volta digam eu também quero e os inimigos, ao atacarem-nos, nos obriguem a desenvolver mais e mais os nossos gostos, porque melhor do que amigo só inimigo.

Orlando Vitorino, convocado um dia pelo governo para dizer o que proporia para o ensino e para a cultura, disse para o Primeiro-ministro: «… o melhor que há a fazer é fechar todas as escolas, a começar pelas universidades». Sabe-se que o não mandaram para a cela acolchoada, mas não o convidaram mais para desarrumar ideias. Nem perceberam. Ou não quiseram perceber. Não se pode perguntar o que fazer com o ensino, com as escolas, sem primeiro definir para que serve a escola. Se é para formar caixas de supermercado, então o Belmiro de Azevedo que trate disso. A escola simplesmente utilitária forma produtores consumidores, não forma seres pensantes e críticos. Não forma cidadãos de corpo inteiro e ampla alma. E este é o grande busílis.

Além disto, seguindo eu, embora adaptadamente, o pensamento de Gurdjieff, aceito a sua ideia dos homens adormecidos e dos homens acordados. Dizia ele que 90% da humanidade dorme e só dez por cento está acordada. Os que estão acordados têm dificuldade em acordar os que dormem, porque eles não sabem que dormem, julgam-se acordados. Nesta concepção, os que estão acordados têm a capacidade de agir; os outros mais não podem do que reagir.

É preciso muito cuidado com os que dormem, se os tentamos acordar, podem tornar-se agressivos, Então, só nos resta – se é que somos dos acordados – tornarmo-nos vírus patogénicos da doença que julgamos boa e sermos altamente contagiosos. Mas nada de acreditar muito na evolução, porque as coisas não mudam por evolução, mudam por revolução. Não a revolução pelas armas, que essa substitui um grande mal por um mal idêntico, de sinal contrário. Não quero negar o Darwin, quero dizer que mesmo que eu ponha os pés de molho durante anos não fico com pés de pato. Ou patas. Não fico mais apto para os dilúvios, fico menos apto, devido ao reumático,

Então o contágio, do meu ponto de vista, faz-se por focos, por círculos que se alargam. Se estes círculos se integrarem no mercado, se se deixarem contaminar pela ideologia de mercado, nada mudarão; a sociedade mudá-los-á. Tem acontecido a muitas organizações cheias de boas intenções.

ABDUL CADRE

domingo, 11 de dezembro de 2016

NO DESINFELIZMENTO DA VIDA

 

Era uma vez uma jovem bonita e bem-casada, vivendo aquela felicidade que só a classe média despreocupada, usando óculos escuros, consegue. Por não ter outros afazeres, olhava as montras da baixa com o olhar astuto dos viciados em compras. Eis senão quando, dobrando uma esquina, numa montra provocante, uns sapatos lindos de morrer se puseram a chamar por ela. «Não posso!», exclamou. Este não posso não quer dizer exactamente que não podia. Vocês sabem disso, não sabem?

Entrou na loja de rompante e gritou para o empregado: «quero aqueles sapatos». Não descrevo os pormenores do calça e descalça. Foi o trivial. De relevo apenas que, com os sapatos novos nos pés, pegou com as pontas dos dedos e ar enjoado nos que trazia e disse para o empregado: «Olhe, se não se importa, deixo isto para os pobrezinhos, percebe». Ela não disse percebe, claro, disse pecebe, que é como se diz em chiques.

Não esperou pela resposta e desandou em direcção ao parque de estacionamento onde deixara a viatura. Estava mais feliz do que no dia em que se casara.

Não estavam percorridos 500 metros e os sapatos lindos – quem vê caras não vê corações – desataram a morder-lhe os calcanhares com uma fúria que nem cão, desses das raças proibidas Mais 500 metros e não se conteve, atirou-se para o chão e desatou a berrar: «Ai, sou tão infeliz, que desgraça a minha!» Gritava que se desalmava e muita gente se acercou. Pobrezinhos, com certeza. «Que foi, minha senhora, morreu-lhe alguém?», perguntou um dos mirones mais afoito. Que não, que era bem pior, que estava mais infeliz do que quando lhe morrera a mãe.

E talvez não fosse caso para menos. Descalçou um dos sapatos e ali estava uma bolha enorme no calcanhar rosado.

ABDUL CADRE

DESOPINIÃO

Eu sei, eu sei que é muito difícil, mas creiam que faço um esforço muito grande para não ter opinião. Ter umbigo já me basta e sobra. Que querem? Não gosto de ter o que todos têm, incomoda-me. Mas será que realmente têm?

Às vezes dou comigo a suspeitar que ninguém tem opinião, dizem que têm, mas é só para armar ao pingarelho; afinal, as opiniões é que andam por aí e agarram as pessoas pelos cabelos. Dos carecas é que não sei.

De qualquer forma, há uma dúvida que me atormenta: o que é – para os que dizem que têm – ter opinião?

Será agarrar-se a gente a dizeres que nos dão jeito sem desarrumar o jeito do nosso condicionamento e assim nos tomarem por vivos e sãos?

Isto é só a minha desopinação!

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

UMA QUESTÃO DE ARITMÉTICA

 

Estava a ler o Expresso da semana finda e deparo-me com um problema intrigante de quantidades, que já refiro mais adiante. De imediato, por causa das dúvidas, quero confessar a minha gigantesca inaptidão para as matemáticas. Aliás, fico confuso quando oiço a facilidade com que os debitadores televisivos das aritméticas de assustar nos falam de milhões de euros, dólares, libras e coisas assim. Fico confuso, espantado e raramente calo a minha grande admiração por tão insignes crânios. Bem hajam por iluminarem a ignorância de quem não consegue ir além da contagem dos tostões e de usar os dedos para não se enganar nas contas.

Tenham paciência, que já falo do que li no Expresso. Mas o que li – suspense! – levou-me a recordar uma lenda a propósito do inventor do xadrez – o jogo, não a prisão –, num tempo em que não havia televisão nem debitadores dependurados da pantalha a falar de milhões. Foi o mal do rajá, marajá ou lá o que era o potentado indiano que quis premiar o inventor do jogo do tabuleiro dos 64 quadrados. E este 64 aqui é muito importante, porque o ladino terá dito ao seu soberano que não queria oiro nem honrarias, gostaria de ser pago em grãos de trigo; bastava-lhe um grão pela primeira casa do tabuleiro, dois grãos pela segunda, quatro grãos pela terceira, oito grãos pela quarta e assim sucessivamente até à sexagésima quarta casa.

O rajá, marajá ou lá o que era o tal potentado, contentíssimo por julgar poupar na fazenda, sendo tão incompetente quanto eu para as aritméticas, matemáticas e correlativos, disso imediatamente que sim, e bem sabemos que é suposto palavra de rei não voltar atrás. Claro que o dito cujo ficou tão espantado como eu ficaria quando os seus conselheiros fizeram a conta. Então não é que seriam precisos 18.446.744.073.709.551.615 grãos de trigo, que eu não sei como se lê nem quantos milhões de toneladas dá? Pobre do nosso rajá, marajá ou lá o que era o forçado pagador da promessa.

E pobre da nossa querida doutora Marques Vidal, que tem o dever de perseguir os suspeitos do povo e do correio da manha até às últimas consequências. Então não é que na telenovela socrática, para além de outros números descomunais, ela refere haver NOVE MILHÕES de ficheiros informáticos para analisar?

Espere lá doutora, não seja como eu nem como o rajá, marajá ou lá o que era o tal. Adia o epílogo da telenovela por mais seis meses? Vamos lá a contas: um técnico altamente especializado, trabalhando oito horas por dia, sem outros cometimentos, e levando UM MINUTO para verificar cada ficheiro precisaria de QUARENTA E OITO ANOS.

Já agora, não seria melhor mudar o nome à Operação Marquês e chamar-lhe Operação Marajá, ou grão de trigo, ou cheque mate. Metam lá o homem no xadrez, para o povo ficar contente, e deixem-se de tretas.

ABDUL CADRE

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

TOTALITARISMO E DEMOCRACIA

 

Vendas Novas, 11 de Setembro de 2016

Aceite, consentido ou imposto, todo o pensamento único é, insofismávelmente, a fórmula codificada da implementação do totalitarismo. Nas sociedades sufragistas, que invocam em vão o santo nome da democracia, a prática é, em nome das maiorias, sufocar as minorias até que se tornem invisíveis, escamoteando-se que a opressão, o totalitarismo e a tirania não são um exclusivo de minorias armadas até aos dentes. Tirania é tirania, seja exercida por poucos seja exercida por muitos.

Sociedades de maiorias e sociedades de massas, mais estas do que aquelas, tendem a aceitar qualquer tipo de totalitarismo e estão sempre prontas para o expurgo das diferenças. Os demagogos sabem bem disto e é-lhes muito fácil arrebanhar multidões: vendem à pequena burguesia o pronto a pensar e às classes laboriosas o pronto a dizer, arranjam um inimigo a quem se retira a humanidade e está pronto o estrugido.

Com sufrágio ou sem sufrágio, com inimigos unificadores ou sem eles, o pensamento único impõe-se e torna-se, não uma rotina, como alguns dizem, mas a rotina, o caminho único, o hábito único, o comportamento único; fora destes espartilhos é a heresia e os autos-de-fé. Toda a heresia merece ser castigada. Era assim na outra Idade Média e é assim na actual.

Nesta Idade Média Pós-moderna, seja a Leste seja a Oeste, aposta-se forte nos mecanismos securitários. Na boca dos mandadores deste baile mandado a segurança não passa de um eufemismo que se pode traduzir por alienação das liberdades para espantar o medo. Ora, acontece que, quanto mais queremos calar o medo, mais medo temos, o que nos leva a alienar mais e mais liberdade até que ficamos tão «seguros», isto é, tão agrilhoados que acabamos por ter medo de ter medo. Foi isto que aconteceu nos países ditos do socialismo real e é isto que está a acontecer nos países anti-socialistas integrantes do Império Alemão, a que os ingénuos chamam União Europeia.

Durante o decorrer da campanha actual para a presidência americana, O candidato marginal ao sistema Bernie Sanders dizia algo indesmentível: «Tudo aquilo que temíamos no comunismo: perder as nossas casas e posses, economias, ter de trabalhar duro por um salário miserável realizou-se graças ao capitalismo».

O pensamento único está aí, as fogueiras autênticas de antigamente, não. As que há agora têm outra e diversificada natureza. Por exemplo, a ninguém é permitido, sem a risota geral, pensar fora do sebentismo académico da ideologia do mercado, sucedânea das religiões salvíficas de paraísos impalpáveis. As Universidades formatam os novos sacerdotes da religião do mercado com o mesmo afã com que a igreja romana formatou crentes e incréus ao longo dos séculos. A formatação deixou tantas sequelas que ainda hoje os ateus não conseguem negar outro deísmo que não seja o da Bíblia. De semelhante e paradoxal jeito sofrem os comunistas que sobram por aí: todos eles falam economês com a mesma fluência e convicção dos mandadores e dos mandatários do sistema único em vigor. Também eles assimilaram muito bem o «não há alternativas», mesmo que se retorçam a dizer o contrário. Vejam bem como o pensamento único é mais ameaçador do que o aquecimento global!

Esta aceitação, esta subordinação a pensar segundo o que está instituído e de nos comportarmos como se espera que façamos constitui uma doença grave de características epidémicas, que pode levar à morte da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, tendo como consequência o impedimento da solidariedade, da tolerância, da aceitação do outro e das diferenças, da empatia, da compaixão, do humanismo.

Os sinais estão por toda a parte e só os não vê quem optou por pôr – voluntariamente ou por ignorância – as talas mentais que já não é preciso colocar-lhes à força. Veja-se, por exemplo, como a «indignação» se tornou um produto internético inconsequente e como há tanta gente sentada ao computador a indignar-se com os que não pertencem aos hábitos e aos comportamentos inerentes ao totalitarismo da ditadura democrática. O pensamento único ensina-nos que é bom que nos indignemos, não com o mal, mas com a dessincronia; temos todos de marchar com o passo certo e apanhar muitos Pokemons.

ABDUIL CADRE

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

O USO DA RAZÃO CAUSA DORES DE CABEÇA

 

Há muita gente que, por muito que argumentemos, se recusa ao uso da razão e se deixa aprisionar pelas emoções, que confunde com sentimentos e amor à justiça. Sem dúvida que os sentimentos precisam da emoção – nós não somos robots computadorizados – mas só se podem conceber justos (ou verdadeiros), belos e bons se a razão os educa e a consciência os acolhe. Quando digo consciência, quero chamar a atenção para o cuidado que devemos ter para não sermos iludidos pelos ardis de que o inconsciente se serve para doirar as nossas pílulas.

Se o uso da razão nos causa dores de cabeça, bebamos muita água pura, que passa. Pode, em muitos casos, causar dores e enguiços a terceiros e aí pouco mais podemos fazer do que usar parcimónia, bom-senso e respeito pelo outro. Mas o que importa dizer-se aqui é que a razão é imprescindível para que nos não equivoquemos – ou nos equivoquemos o menos possível – nos objectivos que os desejos pretendem atingir. Aquela anedotas dos escuteiros que, motivados pelo desejo de praticar uma boa acção, atravessam a velhinha que não queria atravessar, é bem ilustrativa de que o resultado de uma acção se sobrepõe à intenção.

Indo ao mais concreto da intenção deste escrito, quero chamar a atenção de quem me lê, de que nos dias que correm surgiu uma corrente de pessoas – não ponho em dúvida que muitas delas sejam bem intencionadas – que argumentando com valores da nossa cultura e respeito para com s outros, se propõem substituir a vontade desses outros pela sua própria vontade, ainda por cima querendo autoconvencer-se e convencer-nos que isso é respeitá-los. Não é! Trata-se precisamente do inverso. Essas pessoas não querem entender que diminuir os outros, torná-los menores mentais não é respeitá-los. Respeitá-los é olhá-los como sujeitos de livre-arbítrio e com a mesma humanidade que nós, sem o que voltamos à vela paródia do Raúl Solnado: «meu filho, quer queiras quer não queiras tens de ser bombeiro voluntário».

Vem tudo isto a propósito de, na semana passada, três mulheres usando burkini na praia – em Cannes – terem sido multadas. Se não pagarem, vão para a cadeia.

Que forma extraordinária de defender aquelas que foram consideradas, pelos totalitaristas do pensamento único, como menores mentais.

Abdul Cadre

UMA AJUDA AO RACIOCÍNIO

 

Suponhamos que um agente da autoridade, de preferência feminino, chega junto de uma mulher que usa burkini, na praia, está bem de ver, e lhe diz, sem enjoo nem olhar de coruja, «bom dia, minha senhora, desculpe incomodá-la, é de sua livre vontade usar essa vestimenta?».

É claro que isto somos nós a delirar, porque é muito difícil alguém imaginar um agente da ordem (?) a tratar com decência e como cidadão quem, progressivamente, vai sendo objecto de redução à categoria de sub-humano pelos cínicos de serviço nos media e na política. Mas adiante. Suponhamos, continuando este delírio, que a cidadã diz que sim. O caso está arrumado e a agente partirá à procura de carteiristas e vendedores de bolas de Berlim estragadas. Se a cidadã disser «não, senhora mulher-polícia, eu sou uma desgraçada, eu até queria fazer top less, mas o meu marido não deixa e a minha família obriga-me a andar assim vestida», é evidente que terão de ser tomadas medidas, não contra a cidadã e o seu burkini, como em Cannes, mas contra o abuso do poder familiar de que a cidadã é alvo. Se alguém tiver de ser multado ou preso, não pode ser ela.

Só mentes doentes e atitudes doentias podem levar aos procedimentos que se conhecem e os inquisidores aplaudem.

Se me der a travadinha e me vestir de galochas, capotão impermeável, um capacete de escafandrista na cabeça e for a banhos em Cannes, posso ser motivo de risota, mas não sou multado nem preso; os inquisidores locais não me acusarão de prejudicar o turismo, antes pelo contrário, farão de mim atracção turística. Posso até ser entrevistado para a televisão. «Por que é que o senhor se veste assim para andar na praia», pergunta o entrevistador entusiasmado pelo exclusivo conseguido. Aí, faço o meu sorriso de humano autêntico e de raça superior e digo: «porque não me apetece vestir assado…»

Abdul Cadre

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

CARTILHA LIBERAL-UTILITÁRIA

V. Novas, 22 de Agosto de 2016

Muitos daqueles que se afirmam liberais, de liberais não têm nada e o mais que papagueiam e repetem é aquela coisa em que nem sequer acreditam de «menos estado e melhor estado». A não ser que menor estado seja acabar com a saúde e a educação para que os amigos se lambuzem com o que isto possa dar e melhor estado seja viver liberalmente à conta do orçamento. Os nossos liberais querem o estado mínimo, porque para passar cheques liberais basta ter a letra bonita.

Pois é, os nossos liberais regem-se pelo que lhes dá jeito e dão a isso o nome de liberalismo, porque havia que dar-lhe um nome, gostam do termo, soa bem. Mas nunca leram qualquer obra a respeito. Neste aspecto, assemelham-se a um grande de número de católicos que, não tendo lido a Bíblia, sabem da poda, ao que julgam, por ter ouvido falar e atiram com a fé que dizem ter à cara de quem calha para se vangloriarem da sua superioridade moral. Usam a religião como quem usa shampoo ou creme facial, coisas de exclusivo uso externo.

Lembro-me de um Primeiro Ministro liberalíssimo que se inspirava para o ser na obra do Pai da Singapura moderna. Fazia-o para dar a impressão que tinha ideias sem se arrepiar com o peso do estado na cidade-estado nem com o «respeitinho» que ali reina.

Pode dizer-se que a melhor cartilha do liberalismo foi produzida pelo filósofo utilitarista Stuart Mill, o célebre Ensaio sobre a Liberdade, ou simplesmente, no título original On Liberty.

Eu sei que ler com atenção e reflectir sobre o que se leu dá muito trabalho; é bem mais fácil repetir lugares comuns, dizer o que se espera que digamos, estar na moda do dizer com a mesma displicência com que se usa o telemóvel para fazer luzinhas nos «concertos», porque os outros também fazem.

Mas, caramba! Um dia não são dias e há sempre uma primeira vez.

Daqueles que têm hábitos de leitura, mas torcem o nariz a coisas que cheirem a liberalismo, se não leram, leiam; se leram, releiam. É estimulante. Sobretudo, faz-nos perceber como cada liberal que nos aparece pela frente é invariavelmente um antiliberal que se desconhece.

Na contracapa da edição de Abril de 1973 (Arcádia) pode ler-se este apelo à leitura: «Quais os limites do poder que pode ser legitimamente exercido pela sociedade sobre o indivíduo? Qual a sua natureza? Posto neste plano – civil e social – o problema da liberdade encontra nesta obra clássica dos estudos que têm sido dedicados à luta entre a liberdade e a autoridade uma interpretação extremamente lúcida e actual. Para Stuart Mill a questão da liberdade pressupõe o valor do indivíduo de que depende o valor do Estado.

ENSAIO SOBRE A LIBERDADE põe assim o dedo numa ferida aberta neste nosso século brutalmente atraído pelas MEDIOCRACIAS TIRÂNICAS que reduzem o indivíduo à menoridade Mental».

Este posfácio, escrito em 1973, está perfeitamente actualizado.

Abdul Cadre

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

O QUE SABEMOS, O QUE CALAMOS E O QUE OPINAMOS

V. Novas 18 AGO 2016

Quando homens de grande e reconhecido saber dizem que apenas sabem que nada sabem, podemos duvidar que o façam por autêntica modéstia e presumir que o façam por não quererem ser tomados por vaidosos. De qualquer forma, sabem eles e sabemos nós que o saber é como o ar, tende a expandir-se, mas por mais que enchamos de ar um balão, do lado de fora haverá sempre muito mais e a expansão de dentro depende do ar que existe fora; se não houvesse essa pressão, o balão rebentava e o seu ar fugia.

Com a cabeça, se for nela que tudo se armazena, que nos sirva a metáfora, como dita a propósito do balão.

Segundo se diz, mais importante do que o saber é a sabedoria, algo muito difícil de definir, mas que supomos ser impossível armazenar; não é do domínio da quantidade: é uma qualidade, um modo de ser. Mas não cabe aqui falar disto, porque o que quero nesta oportunidade é falar de opinião.

Não me canso de dizer que ter opinião e ter umbigo calha a todos, não vale a pena andar por aí a apregoar, ufanos que se tem, porque, em boa verdade, o que importa é ter o umbigo bem limpinho, como sinal de que tomamos banho, e a opinião bem fundamentada, para que não nos tomem por relógios de repetição. Bom será, porém, que aquilo que nos saia da boca não venha por simples reflexo condicionado do mal de viver; bom será que sejamos capazes de ter para com a vida um sorriso de justa cumplicidade.

Por regras da natureza, o umbigo é fixo e não se lhe reconhece qualquer utilidade. Já a opinião, se a pessoa é inteligente, não se fixa, é plástica, móvel, reciclável e pode ser muito útil à comunidade. Mas não é assim nos empedernidos. Nestes, a opinião que dizem ter é fixa, imutável e disso se vangloriam.

A opinião dos empedernidos não se diferencia do umbigo, a não ser pela localização. A serventia é a mesma: nenhuma.

A opinião dos empedernidos é um tóxico social não reciclável, não ecológico. Mas, em bom rigor, a opinião deles não nasceu por eles, apenas neles ecoa, apenas por eles foi adoptada porque lhes dava jeito. É silenciada ocasionalmente nos momentos em que se suspeita poder trazer prejuízo. Os empedernidos, se pudessem dizer, sem que fossem olhados de esguelha diziam eu sei que tudo sei.

Isto talvez seja mais característico entre os portugueses do que no seio da maioria das culturas. Vem no nosso registo genético. É por isso que temos quase todos o mau hábito de falar primeiro e só pensar depois, se houver vagar.

Se quiserem fazer uma experiência muito simples e reveladora, ponham uma braçadeira de repórter de uma qualquer rádio e cheguem, de microfone em riste, junto de um qualquer transeunte e perguntem-lhe o que pensa da química do carbono e verão que recebem uma resposta pronta, que começa quase sempre por um acho bem (ou um acho mal, se o indivíduo estiver em dia azedo).

Porque se opina assim? Suspeito que seja para que não nos tomem por ignorantes. Era o que mais faltava!

Não sei se este fenómeno cultural tem a ver com certas práticas tolas das nossas escolas, como perguntar a um aluno que nunca leu Descartes o que é que ele pensa da sua filosofia.

Com certeza que é bom fazer perguntas aos alunos, mas melhoria seria ainda ensinar-lhes a perguntar e evidenciar-lhes que para bem pensar se deve falar metade do que se ouve, em respeito pela natureza, que nos deu dois ouvidos e apenas uma boca.

Mas será que, para ter opinião, é necessário ser muito instruído? Não! O que é preciso, para que não seja um tóxico, ou um simples ruído é que se tenha bom senso e que não se emita como opinião o que não passa de um desopilar dos maus fígados. O bom senso implica não me pronunciar sobre o que ignoro e, do que saiba, ter a noção de que outros saberão melhor, ou saberão diferente.

Eu sei que apelar ao bom senso é coisa de pouco senso, pois que bom senso é coisa de que ninguém se queixa de ter falta. Há até quem ache que tem mais bom senso que os demais.

Numa entrevista ao El Mundo, falando sobre o jornalismo dos nossos dias, que não faz qualquer uso do bom senso, dizia Umberto Eco que “todos os habitantes do planeta, incluindo loucos, têm hoje direito à palavra pública”. Veja-se o lixo das redes sociais e veja-se o nojo que são as “antenas abertas”. Veja-se também como certas publicações, pela pluma dos seus intriguistas encartados propagam o ódio, a maledicência e a calúnia.

Há, por exemplo, uma coisa com aspecto físico de jornal, propriedade de “empreendedores” angolanos, que tem uma tiragem enorme; será lido por mais de um milhão de angustiados ou correlativos. Estou convicto que à maioria será suficiente ler as parangonas; isso bastará ao seu azedume.

Trata-se de um instrumento alienante e tóxico, que mereceu de Pedro Marques Lopes, no Eixo do Mal, o epíteto de «esgoto a céu aberto». Não é um órgão informativo, mas sim desinformativo, deformador. Quem tome aquilo por sério e verdadeiro só tem um remédio: cortar os pulsos, ou dar um tiro na cabeça e fugir para a Espanha.

Como pode tal aberração ter o êxito que tem? Não sei responder. E não venham de microfone em riste para que eu responda…

Mas suspeito que a principal razão é precisamente ser aberrante. Outra razão: ser boa música de fundo para acompanhar o azedume dos portugueses, que vociferam contra tudo e contra todos, mas pouco cuidam dos seus direitos.

Direitos? Para quê, se os políticos – que ao que parece são extraterrestres – são todos uns malandros da pior espécie – que a minha mãezinha é que não – e o mundo vai acabar. E não há nada que seja culpa nossa, a culpa é dos outros, porque o inferno são os outros.

Sejam bons portugueses, façam os possíveis e os impossíveis por serem infelizes.

Abdul Cadre

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

O SEGREDO ESTÁ NO ESPELHO

Digo amiúde aos meus amigos: não me dêem conselhos, deixem-me errar por mim próprio. No entanto - deve ser da idade - é com frequência que não emprego a doutrina ao contrário. Querem conselhos? Não? Então eu dou: olhem os políticos, vejam-nos cheios de defeitos, de seguida digam ao espelho: tenho de corrigir isto e aquilo. E não vigiem quem deva ser vigiado, deixem isso à polícia. Vigiem a polícia. E não julguem quem deva ser julgado, deixem isso aos juízes. Vigiem e julguem os juízes. E, se se comprazem a tecer cobras e lagartos dos políticos, por favor, não votem neles ou terei de chamar-lhes nomes feios.

Abdul Cadre

LEIAM E DESINFECTEM-SE

Aprendam a não se excitarem com as notícias que são feitas precisamente com esse fim, porque essa coisa de comunicação social foi chã que já deu uvas e o que dá lucro a essa instância corruptora é a excitação. É com ela, manipulando as massas, que se dá lustro ao sistema. Os cães de guarda já estavam amestrados e de coleiras de veludo quando o Serge Halimi escreveu OS NOVOS CÃES DE GUARDA. É muito apropriado que se diga, em vez de comunicação social, corrupção social. Todavia, podem ler-se os pasquins sem sujar a mente. Por exemplo, procurar saber da intenção desta ou daquela notícia ou, melhor ainda, se lerem - será possível - o grande corruptor crime da manhã (ou correia da manha, como se lê na NET), basta este cuidado: onde eles escrevem preto deve-se ler branco, e vice versa.

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

LOUVADOS SEJAM OS EXCÊNTRICOS

V. N. 17 AGO 2016

Há muita gente que se esforça por saber como são as coisas, tanta quanto a que tanto se lhe dá, mas, felizmente – e é por isso que as coisas progridem e evoluem – há uns tantos inconformistas que se interrogam por que são elas de uma maneira e não de outra. Melhor, todavia – pena serem uma raridade –, é a dádiva dos excêntricos que inventam as coisas a que a maioria não liga, mas que fazem com que os esforçados aprendam e os curiosos se interroguem.

ABDUL CADRE

terça-feira, 16 de agosto de 2016

PENAS E FALSAS PENAS

Vendas Novas, 16 AGO 2016

Vivi em dois territórios muito distantes daqui (e muito distantes entre si) onde a maioria da população era muçulmana. Em nenhum deles as mulheres usavam véu e em nenhum deles levavam chibatadas. A poligamia era a regra, o divórcio fácil, o adultério não era sujeito a mais castigo do que o repúdio. Por isso, quando oiço as lendas da NET sobre o horror muçulmano fico com muita pena por haver tanta ignorância à solta a botar discurso, eu que vivi no tempo em que as mulheres portuguesas só passavam a fronteira com autorização dos maridos e que se um pobre casasse com uma rica era como sair-lhe a sorte grande, pois a lei dizia que ele era o administrador dos bens do casal; podia até dizer «olha, dos teus bens, só te dou tanto por mês, para os teus alfinetes». Há dias, um tal Sérgio remeteu-me pelo Facebook uma foto que aludia a 200 chibatadas a uma mulher, na Arábia Saudita, que havia sido violada por um grupo de energúmenos. Não sei porquê, o Sérgio esqueceu-se de dizer que a "pena" não chegou a ser aplicada, devido aos protestos internacionais que gerou. Este jovem também se esqueceu de dizer que isto se passou há vários anos, quando era presidente dos EEUU o Bush Jr. Por que será que o moço se esqueceu? Porque é preciso que haja medo. Que tenhamos todos muito medo. Medo do outro, do feio, daquele que não tem direito à humanidade. Mas forneceu-nos um remédio para curar a sua indignação, que até seria louvável, se não rematasse a coisa com imensos disparates, desde citações bíblicas até concluir que os muçulmanos deviam ser todos mortos. Não sei se no seu decreto incluía a mulher condenada às tais chibatadas, pois, ao que parece, também ela é muçulmana. Ou a morte era só para os homens? Ódio, racismo, xenofobia dá nisto.

ABDUL CADRE

DETESTO SENTIR-ME CANSADO

Vendas Novas, 16 AGO 2016

Detesto sentir-me cansado. Quando era jovem julgava que aqueles que se diziam cansados eram piegas ou mandriões. Hoje o corpo já me pesa, mas resolvo a coisa com uma boa soneca, o chamado ioga ibérico. Mas o pior é um outro tipo de cansaço, o cansaço de ver os jovens curvados (como se fossem velhos) à caça dos gambozinos, isto é, dos pokemons. Também me cansa a mentalidade inquisitorial que se está a instalar no mundo; petições por tudo e por nada: para impedir, para calar para proibir. Que saudades - que apenas deveria ter do futuro - quando nos muros de Paris se escrevia é proibido proibir. Outros tempos. Tempos de gente viva. Olho pela janela e entendo Fernando Pessoa no remoque aos cadáveres adiados que procriam. Aliás, já nem por isso.

ABDUL CADRE