Cambridge, 12
SET 2014
Lucy foi o nome dado a um fóssil de
australopitecos atarensis de 3,2 milhões de anos, descoberto em 1974 no deserto
de Atar (Etiópia). O nome do achado foi inspirado pela canção dos Beatles Lucy in the Sky with Diamonds, que
tocava com frequência no acampamento dos pesquisadores
Lucy é também – e as inspirações e
conotações ali estão – o título do frenético filme de entretenimento que se
exibe em Portugal, com grande afluxo de espectadores, o qual se esgota na
embalagem, sendo mal empregados os actores em tal fancaria. Os ingredientes são
os do costume quando não se sabe o que fazer com a ideia central: droga, máfia,
polícias corruptos. Isto é receita mais do que certa para os amantes de efeitos
especiais e muita acção, isto é, pancadaria.
Mas tudo isto é o menos porque serve a
quem serve e gosta quem gosta. O pior é o recurso a um disparate assaz popular,
apresentado como científico, que tem sido muito acarinhado pela contracultura
New Age. Refiro-me àquele mito urbano que quer fazer passar a ideia de que só
usamos 10% do nosso cérebro.
Esqueçamos pois o filme e debrucemo-nos
apenas sobre o disparate que tanto conforto dá a quem espera que um qualquer
plim o transforme em Einstein. Por curiosidade se diga – e certamente muitos se
recordarão – que nos anos setenta, em Lisboa, nos acessos ao Metro, distribuíam
uns papeluchos em que um Einstein com a língua de fora nos dizia: só usamos dez
por cento do nosso cérebro. Estávamos no auge da propaganda da dianética, do
falecido Ron Hubbard e da sua igreja da
cienciologia. Qual era a proposta desta gente? Pôr a funcionar os 90% de
células mandrionas.
Christopher Wanjek, no seu livro Bad Medicine, diz muito apropriadamente
que se deixássemos de utilizar 90% da nossa massa cinzenta, os neurónios
inativos degradar-se-iam. Tenhamos em conta que a doença de Alzheimer se deve à
perda de 10 a 20% das células nervosas.
Faz algum sentido, uma espécie
desenvolver uma cabeça enorme, a qual impede a autonomia imediata ao nascer e
põe em perigo a vida da progenitora, para depois utilizar apenas 10% do
conteúdo de tal cabeçorra?
Sabendo-se como a natureza é avara, para
quê o dispêndio energético com os inúteis 90% não utilizados, segundo as
fantasias populares e os «parapsicólogos» de vão de escada?
Ao que parece, este mito resultou da conjugação
de vários equívocos despoletados por uma citação de um estudo de William James,
aliás inexistente, efectuada por Dale Carnegie. Depois, tendo em conta as
localizações cerebrais, confundiu-se actividades que ocupariam dez por cento
das funções do cérebro com permanente inactividade dos outros noventa por
cento. Todavia, sabe-se hoje, sem lugar para dúvidas, mediante comprovações de
medicina nuclear (tomografia por emissão de positrões TEP), que não existe em
circunstância alguma qualquer inactividade de zonas cerebrais. No cérebro, tudo
é acção.
Mas nesta aberração pseudocientífica
nunca fica muito claro se os dez por cento se referem ao tamanho se à
capacidade. É que antigamente os computadores eram enormes e tinham uma
capacidade muito inferior aos portáteis mais maneirinhos do mercado. Além
disso, o tamanho do cérebro não determina necessariamente a qualidade do seu desempenho,
de contrário, o Homem de Neandertal teria sido mais inteligente que o homem
actual e o cachalote, com o seu cérebro de sete quilos, teria batido aos pontos
o Einstein, para desespero da cienciologia e outras seitas congéneres. Mesmo
que quiséssemos aquilatar da coisa pela razão volume do cérebro vs. volume do
corpo, de imediato nos deparávamos com o rato, que até é um bicho esperto, a
ser mais inteligente do que o cavalo ou do que o cão, e bem sabemos que não é
assim.
E não se prenda demasiado o cérebro à
cabeça porque as aranhas, por exemplo, têm o cérebro espalhado pelo corpo,
especialmente pelas pernas e as sanguessugas – imagine-se! – têm 32 cérebros.
Desta falácia, o que é de espantar é ver
gente ligada ao esoterismo a abanar a cabeça que sim aos dez por cento. Então,
acreditando que o homem tem outros corpos, para além do físico, um dos quais
seria o mental, este serviria para quê?
Para além dos muitos artigos científicos
que combatem esta crença, revistas populares como a Super Interessante, têm-no
feito também. Um programa televisivo do Discovery Chanel, do qual não sou
grande fã – Myth Busters (Os Caçadores de Mitos) – no episódio de 27 de Outubro
de 2010, os seus apresentadores usaram a magneto encefalografia (MEG) e a ressonância
magnética para formar a imagem do cérebro de alguém submetido a uma tarefa
mental complicada, verificando-se que quase 100% do cérebro se encontrava em
intensa actividade. Isto é algo que muitos cientistas, antes e depois, têm
comprovado. Sabe-se que algo de tão simples como tocar guitarra leva praticamente
a totalidade do cérebro a intervir. Não existe uma única actividade em que todo
o cérebro – CEM POR CENTO – não participe. Mesmo que estejamos a dormir, o
cérebro não dorme. Aliás, o cérebro não é sujeito. Não se pode dizer que o
cérebro pensa, o cérebro não pensa, quem pensa são as pessoas. Do mesmo modo,
as pernas não andam, nós é que andamos, movimentando as pernas. Não se pode
confundir aquele que age com as formas e os meios de agir.
AC