segunda-feira, 23 de abril de 2012

A VACA E A CENOURA

Vendas Novas, 23 de Abril de 2012

JAMES EPHRAIM LOVELOCK é um daqueles superdotados que nos põe a todos felizes por pertencermos à espécie humana e um tanto invejosos da sua sabedoria. Investigador em várias áreas, inventor e colecionador de doutoramentos – Física, Química, Medicina, Matemática –, a sua fama em todo o mundo derivou sobretudo das suas originais propostas, por vezes muito controversas, como ambientalista.

É o grande arauto da chamada Hipótese Gaia, que procura explicar o comportamento sistémico do nosso planeta, olhado como um superorganismo. Contra a corrente dominante entre os ambientalistas, é um defensor acérrimo do nuclear, que considera a única alternativa realista aos combustíveis fósseis para dar resposta às enormes necessidades energéticas da humanidade sem aumentar os gases com efeito de estufa.

Lembrei-me de o trazer aqui, não propriamente para desenvolver as questões atrás referidas, mas porque me lembrei duma sua frase bem-humorada. Perguntado por que se tornara vegetariano, respondeu: «É que, quando se lhe espeta uma faca, uma vaca grita mais do que uma cenoura».

Isto transporta-nos para uma dimensão ética da vida, mas também não é disto que quero falar. Competentes nesta área serão as pessoas ligadas ao PAN, o partido dos amigos dos animais. Eu prefiro falar para os pecadores, principalmente para aqueles que são capazes de tornar o mundo melhor sem deixarem de ser egoístas.

Longe de mim, creiam, querer converter os meus leitores às delícias da alface e da cenoura, mas já pensaram que as grandes manadas de gado bovino causam mais prejuízo ao buraco do ozono do que a circulação automóvel?

Meus amigos, é preciso ser egoísta, mas consequentemente.

Acham racional que, na alimentação dos animais que transformamos em alimento, se gastem quatro quilos de proteínas vegetais para obter apenas um quilo de proteína animal?

E sabem que mais? As próximas guerras de países vizinhos terão como motivo a disputa da água, que se está a transformar num bem demasiado escasso. Antigamente, no interior do país, era vulgar um vizinho matar à sacholada o outro que lhe desviava o rego de água das regas. É isto que se vai passar entre países vizinhos, se não arrepiarmos caminho.

A sachola ficou só para as batatas quando a água pareceu ficar abundante pelo recurso a represas, barragens e furos artesianos. Porém, quando se percebe que um dado campo suscetível de produzir 100 toneladas de batata, transformado em pasto não conseguirá sequer produzir uma tonelada de carne bovina, percebe-se também como somos irracionais na produção, principalmente se soubermos que um quilo dessa carne nos pode custar, no mínimo, 10 mil litros de água.

Devíamos levar o nosso egoísmo a sério. Já viram que, para produzir um quilo de arroz, precisamos de cerca de 2 mil litros de água, ao passo que um quilo de carne bovina nos exige cinco vezes mais?

Ser egoísta pode ser uma grande virtude.

ABDUL CADRE

«QUANDO A PÁTRIA QUE TEMOS NÃO A TEMOS»

Vendas Novas, 23 de Abril de 2012

ESTIVESSE ainda Sophia entre nós, e talvez repetisse o seu amargurado verso de 1958: «Este é o tempo em que os homens renunciam».

Referia-se a poetisa ao tempo que cada vez menos gente recorda, porque o esquecimento é simultaneamente um bem e um mal consequente ao renovar das gerações. Dado que ela não pode repetir esse verso, eu peço-lho emprestado, porque este toque de finados a tudo o que o 25 de Abril significa e tem ainda por incumprido anseio traz de penitência os portugueses a quem vão confiscando os salários e de olhos fechados e coração gelado os cínicos que usam bandeiras nacionais na lapela.

É o tempo em que os vencedores do contragolpe do 25 de Novembro completam a sua obra, indo mesmo além do seu desejo inicial, tal como estão indo além das ordens da troica no jeito que lhes é próprio: atentos, veneradores e muito obrigados.

Para quem era já era adulto há quarenta anos e viveu os últimos de silêncio sepulcral daquele «estado novo» que morreu de velho – É certo que empurrado pelos capitães de Abril – a chamada «Revolução dos Cravos» foi bem um abrir de janelas viradas ao sol, uma explosão de consciência; para aqueles que nasceram depois, a data não passa de algo de significado quase esotérico que só os «cotas» parecem entender ou desentender, de acordo com as suas particulares idiossincrasias, condimentadas pelos caprichos do tempo. Foi por isto que nem todos os «cotas» se sentiram (parafraseando Mello Breyner) «livres habitantes da substância do tempo», nem o acontecimento foi para todos «a madrugada esperada, o dia inicial inteiro e limpo».

Esta rendição popular seria igual às muitas rendições que os tempos trazem no ventre, não fora a vitória inicial ser uma promessa carregada de sentido e alcançável com um mínimo de intenção a que não bastasse o slogan e o era tão bom não era.

O processo revolucionário que se seguiu ao golpe militar – o chamado PREC – poderia ter tido um desenvolvimento progressivo, plural e fraterno, mas, por virem da noite escura para o dia claro, os muitos assim ofuscados deitaram tudo a perder. Além disso, estas coisas não se fazem por encomenda, são movimentos sociais vivos, não são chás dançantes.

Atualmente há um outro PREC, de natureza inversa ao anterior. A este, que cavalga a crise, esperamos nós que igual destino lhe reserve o tempo e a história.

Prometiam os militares de Abril levar a cabo três coisas, que até não seriam assim tão ambiciosas, os célebres três DDD: descolonizar, democratizar e desenvolver. Ora, verdadeiramente só o primeiro foi concretizado; os outros ficaram-se pelos sucedâneos. A democracia foi reduzida ao sufrágio e o desenvolvimento, que fez muito pelas vias de comunicação e pelo saneamento básico, pouco fez pelas mentalidades e pela cidadania. Feitas as contas, lucraram muito os que sempre lucram, apanharam umas sobras os mais.

Dos ganhos sociais havidos – ensino, saúde e segurança social – encarregam-se agora os vencedores de servir bem fria a vingança que os satisfaça.

Eis que «a pátria que temos não a temos». Todavia, isto é provisório. Na vida e na história tudo é provisório

segunda-feira, 9 de abril de 2012

APONTAMENTOS SOLTOS PARA UM ROMANCE PIMBA

Vendas Novas, 9 de Abril de 2012

O DEPUTADO do PCP Honório Novo – e sabemo-lo porque ele o disse – tem um gato que se chama Gaspar, nome mais vulgar em gatos do que muitos possam pensar. Tanto assim deverá ser que também na minha família habita um bichano com o mesmo nome, o qual, atendendo aos costumes da generalidade dos gatos, tem uma característica (ou um vício) que muito o diminui: em vez de ir ao caixotinho de areia, faz as necessidades por onde calha, pouco ou nada se ralando com os incómodos que causa a quem lhe paga a paparoca. Eu bem aconselho os donos a darem-lhe o tratamento clássico para esta falta de asseio, mas dizem-me que coitadinho e que era mau para os bigodes, que ficariam sujos.

Este defeito (ou vício) no pobre felino, se fosse em humano dedicado às finanças, equivaleria a nunca acertar no caixote, isto é, nas contas, que é o que acontece com um certo Gaspar que trabalha em ponto morto e discursa ao ralenti, dado que imagina que ninguém o percebe, no que tem toda a razão, não por defeito nosso, mas dele. São tudo coisas da natureza e não há nada a fazer. O que não é da natureza e me deixa um tanto apalermado é o deputado Honório lamentar-se por não poder conversar sobre economia com o seu Gaspar de estimação e, à falta de menos mau que gato, tentar fazê-lo com o seu Gaspar de embirração. Gabo-lhe a pachorra. É que se um não entende nem se espera que entenda, o outro, mesmo que o possa (o que não é líquido), não quer nem lhe convém. Talvez, quem sabe, Honório Novo acabe por concluir que Gaspar por Gaspar antes o outro, porque de nada adianta gastar cera com ruim defunto, nem latim a falar para o boneco, salvo seja.

Faz muito tempo já, diziam certos adversários de hoje e de ontem do pensamento de Honório Novo que, na pátria inspiradora do seu pensar, talvez não se comessem criancinhas vivas, mas que se despachavam os velhos com uma injeção atrás da orelha, lá isso despachavam, olaré.

Bem vistas as coisas, aqui nesta colónia chamada Portugal, não seria despiciendo pensar-se no assunto. Seria até uma solução que em nada destoaria da política geral do governo eleito pelo nosso povo durante um ataque agudo de masoquismo. O único problema, ao que parece, é a falta de verba para seringas e remédio para os ratos. Por isso e por via da crise que só a austeridade cura, os velhinhos que não possam pagar as chamadas taxas moderadoras imoderadas que aguentem pianinho, porque com ou sem injeção a morte sempre vem. Como diz o Gaspar, não o gato mas o outro, não há dinheiro e pronto. Aos velhinhos que não entendam isto, como explicar-lhes o que é a crise?

Crise?

Esta coisa a que chamam crise é um particular modo de produção da riqueza que consiste em transferências à bruta dos pobres para os ricos, o mais que se possa e não possa, que a vida é curta.

Na semana passada, num seu editorial, o diretor do Diário de Notícias condoía-se com o empobrecimento das classes laborais entre 20 a 30 por cento, sem perceber o outro lado do problema e não posso crer que ele não conheça os princípios básicos seja dos negócios, seja da sua contabilização: se há quem perde, há correspondentemente quem ganha; a um débito corresponde sempre um crédito, e vice-versa. Não é bem o princípio dos vasos comunicantes, porque a sê-lo o fluxo seria dos ricos para os pobres, para acertar o nível, e não como está a acontecer.

E o que está a acontecer está completamente certo porque é aquilo que o povo quer e as sondagens bem sublinham.

E como se sabe sem qualquer margem para dúvida e há anos anda em letra de forma num célebre tabloide do povo, o culpado de tudo é esse demónio terrível chamado Sócrates. Ora, nem eu nem Honório Novo temos gato ou conhecemos gato com semelhante nome. Sócrates é uma outra forma de dizer Belzebu.

ABDUL CADRE