sábado, 25 de julho de 2009

EMOTIVIDADE RACIONALIZADA



O PÁTIO DAS CANTIGAS – o filme – é a minha principal fonte de inspiração, quando se trata de política, isto é, de eleições em Portugal. É dele que retiro a principal regra que rege o colocar da cruzinha na papeleta: vota-se num dado patusco para que os outros não ganhem, para que os outros não se fiquem a rir. Foi assim com o Evaristo, que tratava o empregado por camelo, que vendo a filha a ficar para tia, atirou com esta, já no fim do filme: «...Não vai nada, vai é casar com a minha filha, que é para os outros não se ficarem a rir».
Num qualquer pátio das cantigas – e esta aberração em curso, a que despudoradamente chamam democracia, é um autêntico pátio das cantigas – há sempre um Evaristo embirrante, cujas únicas virtudes são vender fiado e ter uma filha para dar em casamento.
Nas eleições que estão à porta, o Sócrates é o Evaristo e, por mais embirrante que seja, quem quiser continuar a comprar fiado terá de votar nele, ou vai ser condenado ao fado, pensando que é de foxtrot que se trata. O problema maior é que nem todos podem casar com a filha dele, esta está destinada ao tal «camelo» que todos os dias faz deslizar a porta ondulada, ora para cima, ora para baixo.
Esta é a racionalização possível daquilo que se pauta pelo princípio da emotividade, calcanhar de Aquiles do sistema sufragista. O povo vota em quem gosta ou contra quem não gosta, não vota em programas, nem escolhe competências, nem sequer honestidades ou coisas similares, que como se sabe já passaram de moda. Desiludam-se os que esperam que a razão se sobreponha à emoção. Ponham os olhos na Itália e no Berlusconi e aprendam.
É por isso que eu desato a rir – até me agarro à barriga com toda a força –, quando oiço os comentadores políticos encartados condenarem a Dr.ª Ferreira Leite por não apresentar o seu programa das festas para o concurso das emoções sufragistas. Não precisa. Quem votar nela não será por dela gostar, o que, convenhamos, seria muito difícil, é para o Evaristo não se ficar a rir.
Depois, quando se vê o Dr. Santana Lopes voltar ao lugar do crime, digamos assim, não nos pode espantar haver perspectivas de que ganhe o sufrágio de Lisboa. Quando passou pelo município alfacinha, pôs a casa em falência técnica, mas o povo ama-o, essa é que é essa.
E como o amor é fogo que arde sem se ver, então, deixem arder, que o meu pai é bombeiro.
ABDUL CADRE

ARMAR AOS CÁGADOS



NÃO SEI se a actual ministra da saúde dá ou não boa conta do recado. Haverá, naturalmente, quem diga que sim e haverá também quem diga que não, o que, aliás, tanto se me faz como se me fez. Gosto do seu ar sereno, e pronto.
Faz para aí uns quinze dias, uma daquelas jovenzinhas presumidas que o numerus clausus conduziu despejadamente à situação de repórter estagiária televisiva, excitada com a gripe que está na moda e querendo excitar os telespectadores, massacrava assim a serena senhora: «mas não acha que é muita irresponsabilidade do seu ministério não serem tomadas medidas face a esta epidemia?»
Com paciência inexcedível e delicadeza que a inquisidora não merecia, a ministra lá lhe foi explicando aquilo que ela não tinha disposição para entender, porque outra era a sua vocação e propósito. Vá lá que, querendo a prevaricadora voltar à carga, alguém teve o bom senso de lhe cortar o pio.
Lembrei-me disto porque, uns momentos antes de começar a gatafunhar esta crónica, estava eu a ver as notícias televisivas e lá aparecia a Dr.ª Ana Jorge a ser massacrada de novo, não sei se pela mesma estagiária, com os sustos da gripe que muitos teimam em chamar suína. Já cansada com tanto chover no molhado e dado que a jovem excitadora social não desarmava, a ministra sai-se com esta: «está bem, está bem, mas olhe que isso de quarentena é coisa que já não se usa; sabe o que quer dizer quarentena? Quer dizer quarenta dias.»
Gostei, Sr.ª Ministra. Mas essas coisas são uma perda de tempo porque gente assim, tão esfomeada por promoção e desejo insaciável de excitar a plebe, não aprende nem quer aprender. Se for qualquer coisa em inglês, vá que não vá, que sempre dá para armar aos cágados. Isto agora é assim, mas devemos esperar que se torne bem pior. Então não é que passaram de ano cem meninos coitadinhos tão engraçados com oito negas? Pois, para não se sentirem frustrados, diminuídos, ou coisa que tal das pedagogias da treta.
Não faz muito tempo, dizia eu para uma alinhadora de prosas, que não escreve uma única página sem a carregar de cabides, rodriguinhos e palavras de abuso, como caos, hecatombe, escândalo: sabes qual o significado original de hecatombe? Morte de cem bois. Evita essa palavra, que desvirtua o que se quer dizer. «Lá estás tu com as tuas manias», disse-me ela, como quem espeta navalha.
É por estas e por outras que nos aparecem os locutores a debitar coisas assim: «Já morreram 130 pessoas graças à gripe suína». Eles não sabem – se fosse inglês, talvez soubessem – que, no contexto, graças quer dizer dar graças, agradecer as Deus; agradecer desgraças só pode ser ignorância ao masoquismo.
Como o inglês é que está a dar, toda a ignorância que o ultrapassa se compensa enrolando a língua. Por exemplo, usar provincianamente o termo saxónico BEIJING em vez do mais antigo e fácil de pronunciar PEQUIM. Sublinhe-se que os portugueses chegaram primeiro àquelas paragens.
Pelos piores motivos, pôs-se de moda falar do SINQUIÃO, embora nenhum jornal, televisão ou cassete pirata use este termo; todos acham que é mais fino atirar com algo de impronunciável e arrevesado: XINJIANG, que é a transliteração para o inglês dum termo mandarim que quer dizer «nova fronteira». Também se podia usar, com este mesmo significado e propósitos de dar nas vistas o equivalente manchu, que é ICE JECEN, mas eu, sendo português, prefiro o velhinho SINQUIÃO, nada tendo contra outras expressões para o mesmo território, que é a maior região autónoma da China, tais como Turquestão Chinês, Turquestão Oriental ou Uiguristão. Tudo menos esse aberrante termo impronunciável. E sabiam que, se se pronunciasse correctamente, deveria dizer-se CHINE DJI AM?
Se calhar, também eu estou a armar aos cágados.
ABDUL CADRE

sábado, 11 de julho de 2009

PORTUGAL DE VERDADE

LBR/COL JORNAL DO BARREIRO
3017 JDB
11 JULHO 2009

Barreiro, 11 de Julho de 2009

QUANDO TRANSPUSEMOS os portais deste terceiro milénio, eram muitos os que de olhos em bico e mãos de prece gritavam «eis aqui a Nova Era», em que tudo seria novinho em folha, a atmosfera estaria impregnada de patchouli e toda a gente usaria malmequeres nos cabelos.
Ora, o que se constata (e não precisava de ser constatado) é que todo o novo é sempre velho ou, como diria Salomão: nada de novo debaixo do sol. Dizendo as coisas mais claramente: cada um de nós, todas as sociedades, todas as nações estão inapelavelmente ajoujados com o peso das gerações mortas.
Quando entrámos, a maioria de nós trazia pela mão os sonhos de quem dorme e as esperanças de quem espera e não se mexe, porque afinal, se acordados os primeiros, outro seria o sonho; se em acção os segundos, outra qualidade teria a esperança e bem diferente seria o mundo.
Entrámos e ainda se ouvia o Geraldo Vandré a cantar, embora já rouco e para orelhas de cera:
«Vem, vamos embora,
que esperar não é saber,
quem sabe faz a hora,
não espera acontecer
».
Ninguém lhe ligou a sério, porque todos tinham o rabo do olho na televisão mais ratinha da nossa praça, a inefável TVI e os ouvidos entupidos de excessos metálicos e piadas grosseiras.
Por esse mundo fora, nas outras TVI, era o mesmo ou ainda pior.
Nada do que se esperava veio e a verdade que, por sinal, nem sequer era esperada, aliás, ninguém queria que viesse, é evidente que não veio. Foi muito falada, mas não veio, esgrimiu-se apenas para deixar apreensivos os medrosos. O que veio mais tarde foi a chamada crise, que é o nome que se dá a uma situação em que o valor da roubalheira é superior a tudo o que foi roubado.
Há quem diga que, de tanto ser violada, a verdade acabou por engravidar e que dessa cópula pecaminosa veio ao mundo uma degenerescência viscosa e verde que se espalhou por aí, tornando-se uma crença plural e avulsa para uso de conveniência e bom proveito na rádio, nos jornais e em tudo o mais que serve à excitação social e à doutrinação dos povos, para que creiam que o mundo é assim e não pode ser diferente nem no campo da imaginação.
Os políticos que embora com muita parcimónia ainda vinham usando umas pitadas de verdade verdadeira, sabendo de fonte secura que a degenerescência viscosa não prejudicava o colesterol, perguntavam-se: somos parvos, ou quê?
Eles sabem perfeitamente que o verde é verdete, mas sabem melhor ainda que quem não o usa não tem do povo as palmas e muito menos os votos, porque o povo ama o verdete como a osga adora o muro. É por isso que, apesar da crise, se ouve gritar nas esplanadas: sai uma coisa mais ou menos e outra assim-assim.
É que a verdade em cada dia da semana é mais deprimente que velório num domingo.
Que se fale verdade num velório, vá que não vá, mas em campanha eleitoral será tempo perdido e, pelas últimas tiradas da Dr.ª Ferreira Leite, já percebemos que ela percebeu, só lhe falta pôr o povo a bater palmas e esperar pelos votos na urna dum qualquer velório de domingo.
ABDUL CADRE