sábado, 7 de dezembro de 2019

PARA DEIXARMOS DE ARMAR AOS CÁGADOS

A NET tem muito de positivo para quem é positivo e muito de negativo para quem é negativo. Uma das negatividades, que pode tornar negativo um positivo pouco acentuado, é esta orgia de se falar de quanta a torto e a direito como se se debitasse ex-cátedra, pronunciando afinal fantasias que nada têm a ver com a teoria dos quanta.

Andam por aí umas tontearias que se podem ler como ameaça – só pode ser ameaça – como é o caso dos anúncios fraudulentos que propõem medicina quântica, pasme-se. E pasme-se ainda mais porque há quem acredite.

Mas o que eu mais deploro é ter de ser polido com os amigos que me vêm falar de quanta. Eu peço-lhes encarecidamente: não me falem disso nem do Pai Natal. O Pai Natal porque não existe e a Física Quanta porque não é o que julgam ser.

A Física Quântica é um ramo da Física Teórica que começou a ser formulada a partir de 1900 com Max Plank, desenvolvida a partir de 1913 por Niels Bohr, Heisenberg, em 1927, com o princípio da incerteza e atingido o seu apogeu formal a partir dos finais da II Guerra.

Nasce este ramo porquê?

Porque a Física Clássica (ou newtoniana) não respondia correctamente à mecânica do infinitamente pequeno. O grande culpado foi Joseph H. Thomson, que em1804 revelou teoricamente a estrutura do átomo. Assim, para explicar o que Newton não pôde, surge a Teoria da Relatividade e a Física Quântica (ou Mecânica Quântica).

A Relatividade serve-nos para descrever a física de objectos muito maciços e de alta velocidade e a Mecânica Quântica os comportamentos atómicos e subatómicos.

As grandes novidades na Física Quântica foram tornar indistinguível os conceitos de onda e de partícula e substituir as «certezas» pelas probabilidades.

Portanto, meus amigos, deixem esse vício de esgrimir fantasias quânticas. Isso é lixo da NET.

A Mecânica Quântica nada tem a ver com misticismo, ocultismo, chinelo de trança, Ovnis, Mestres Ascensionados, Jesus de Nazaré, Buda, formiga de asa, etc. Quem achar que tem, a Casa Amarela, na Avenida do Brasil, em Lisboa, tem receita para isso.

Desculpem, mas estou farto de Quanta. Que enjoo!

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

TODOS OS FINS SÃO PRINCÍPIOS

Há dias, discutia-se por aqui o quanto o Ocidente pode ensinar os povos que não são Ocidente, mas ninguém estabeleceu os limites e as características da coisa. Talvez os crentes nessa coisa que não caracterizam pensem na Europa, mas não se perguntam o que é a Europa. Pensam na Albânia, no Kosovo? Em que será que pensam?

Pelo meu lado, para simplificar geografias, diria que a Europa vai de S. Francisco a Vladivostoque e a sua identificação faz-se pela herança recebida do Império Romano, que por sua vez comportava o helenismo que nele se dissolvera, e se converteu a uma crença totalitária semítica, em desfavor do paganismo, plural por natureza.

O Império Europeu, tal como o império que o gerou, também tem o Oriente e o Ocidente, e, neste caso, o Ocidente tem sede nos USA e o Oriente na UE.

Eis que se torna descabido falar do Ocidente a ensinar outros povos que o não sejam. Já agora, a talhe de foice, é bom que se diga que aprender é sempre possível, ensinar, uma impossibilidade. É por isso que um verdadeiro mestre não ensina, estimula e provoca

Certamente que a efabulação do que seja o Ocidente se esquece de que há outras culturas, bem mais antigas do que a ideia de Europa, provavelmente bastante desagradáveis para nós, mas que esperam a sua vez imperial, como é o caso da China.

A China desenvolveu um «perfeito» e poderoso sistema capitalista, capaz de superar as crises típicas do sistema dito liberal e vai reciclar os estragos da nossa decadência e vilania. Não vai aprender connosco, vai apenas desprezar os conceitos que esgrimimos com a hipocrisia que nos caracteriza. Que caracteriza a cultura judaico-cristã, nosso veneno genético.

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

DO ESSENCIAL E DO SUPÉRFULO

Ainda há muito quem se lembre da escola salazarenga, que punha as crianças, à força da menina de cinco olhos, a debitar de cor as estações dos caminhos de ferro, como se o destino de todos fosse o de ferroviário. Lembrar é bom, para termos a noção daquilo que não deve ser, má é a nostalgia de alguns, que se permitem bolçar azedamente disparates do género: naquele tempo é que se aprendia. Estes saudosistas, se acaso seguiram a profissão de marçanos, estão desculpados. Certamente que lhes foi útil ler, escrever e contar.

Que não se pense, faço ao que digo aqui, que os estragos mentais só atingiram os que gostaram da castração intelectual. Não. O estrago foi geral e as sequelas ainda hoje se fazem sentir no senso comum de encarar os fenómenos do saber e da cultura: o não desenvolvimento do espírito crítico, que leva ao relativismo, a não se distinguir o essencial do supérfluo, o real do ilusório, a crença do saber, a opinião do conhecimento. Agora, com o advento das redes sociais, que eu chamo de anti sociais, a perversão é bem maior, atingimos o ponto de acrescentar à não distinção apontada, a indiferença quanto ao que é verdade e o que é mentira. Chegamos mesmo à extrema aberração de inventarmos conceitos como factos alternativos e convivermos com Fake News, como sendo notícias.

Tudo isto que disse foi no sentido de mostrar ao que nos leva a base enganadora do reino da quantidade que vivemos hoje, mais do que nunca, de confundir o essencial com o acessório. Isto é a raiz do resto.

No livro de que já tenho falado aqui, «Não Contem com o Fim dos Livros», Umberto Eco tem esta apreciação muito inspiradora:

«...Sabemos tudo sobre Calpúrnia, a última mulher de César, até aos Idos de Março, data do assassinato, momento em que ela o desaconselha a ir ao Senado na sequência de um sonho agoirento.

Após a morte de César, não sabemos mais nada dela. Desaparece das nossas memórias. Porquê? Porque já não era útil obter informações sobre ela. E não porque, como se poderia supor, era mulher. Clara Schumann era também mulher, mas sabemos tudo o que fez após a morte de Robert. A cultura é, pois, essa selecção. A cultura contemporânea, pelo contrário, via Internet, inunda-nos de detalhes sobre todas as Calpurnias do planeta, a cada dia, a cada minuto, de tal forma que um rapazinho que faça uma pesquisa para o seu trabalho pode ter a sensação de que Calpúrnia é tão importante quanto César.»

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

O VOLTAIRE DOS DIREITINHAS (OU SERÁ DOS DIREITOLAS?)

Ainda não havia Facebook e já corria nos esterquilínios da NET um texto nauseabundo que o bolçador de aleivosias atribuía a Voltaire – e logo a Voltaire, que tinha um profundo desprezo pelo povo – onde se falava de dois tipos de ladrões, o comum e o político, sendo que o político era escolhido por nós. Ora, no tempo de Voltaire, vivia-se em absolutismo e o povo – a plebe – não era ouvido nem achado em cisas de governação. Aliás, simplesmente não era ouvido, e se tivesse fome que comesse brioches.

Confrontar os espalhadores deste lixo desinformativo, e bastas vezes peçonhento, é receber como resposta que se não disse poda ter dito, porque é muito verdadeiro. Esta gente até fala do verdadeiro, estando a distribuir mentiras.

O truque de dizer não escreveu, mas podia ter escrito é muito facebookista, que o mesmo é dizer pouco aceitável, dado que se eu disser que uma pessoa disse uma coisa que afinal não disse, ela põe-me um processo e de nada me vale dizer que podia ter dito, porque isso levará o juiz a agravar-me a pena.

Eu sei que estamos num tempo que vale tudo até tirar olhos, mas eu nem aos bezugos tenho a coragem de tirar os olhos.

Dizer que aquela coisa mal escrita assentava que nem uma luva no pensamento de Voltaire é desconhecer completamente o que ele pensava e o que não pensava. Por exemplo, não lhe passava pelo bestunto que o povo pudesse votar, Voltaire condenava o Absolutismo, regime que vigorava na França do seu tempo, porém defendia a necessidade de uma Monarquia centralizada em que os reis, assessorados pelos filósofos fossem capazes de fazer reformas de acordo com o interesse da sociedade, que o mesmo é dizer da alta burguesia a que ele pertencia. Voltaire tinha verdadeiro desprezo pelo povo e a sua melhor qualidade era uma língua afiada que lhe valeu ir parar várias vezes à Bastilha e conhecer o exílio. A sua coragem anticlerical era uma imagem de marca inexcedível, até porque ser anticlerical era muito perigoso.

É ler. É ler. E nada de truques, dar o seu a seu dono.

NÃO SE LAPIDA FAZENDO CÓCEGAS

«O povo nunca é humanitário. O que há de mais fundamental na criatura do povo é a atenção estreita aos seus interesses, e a exclusão cuidadosa, praticada sempre que possível, dos interesses alheios».

FERNANDO PESSOA

Livro do Desassossego.

Não fui eu quem disse, foi o Pessoa desassossegado, mas dou nota 17 ou 18. Repetindo-me: o povo é o sítio de onde todos vêm e para onde ninguém quer voltar, tal como ninguém quer voltar ao útero materno. Acontece, todavia, que há homens e mulheres – mais os homens do que as mulheres – que não saem bem paridos e sofrem muito de foto-fobia. Chama-se-lhes, por vezes, imaturos, mas aqui há que ter algum cuidado, porque a fronteira entre o maduro e o podre é muito ténue. De qualquer forma, tal como os pássaros abrem as asas e voam, tal como o Fernão Capelo Gaivota se atreve, a regra de crescer é enfrentar a luz, não o regresso à caverna ou ao útero. Da caverna quem bem sabia era o Platão, do útero todos sabem, mas muitos esquecem sem o benefício da experiência havida.

Quando falamos de povo estamos a abusar do conceito, ao tomar por concreto aquilo que é uma abstracção, porque se trata de olhar a massa sem ver o indivíduo. Por isso, perante aqueles que deificam tal abstracção, eu pergunto tantas vezes: o que é povo, o Pinto Balsemão ou o trolha que espanca a mulher? A Madre Teresa de Calcutá ou o Charles Mason? A velhinha que dá comida aos pombos ou o carteirista dos eléctricos da carreira 28? Os políticos ou os que elegem e os que não elegem os políticos?

O conceito de povo é demasiado equívoco, mas o que mais se vê é muita gente tentando enganar-se a si própria e aos outros, invocando o povo com aquele jeito mimético de quem está na missa a receber a hóstia para se sentir bonzinho e ter desculpa para as maldades que não renega. E não renega porque é autenticamente povo e povo é o lugar de todos os vícios, superá-los é superar a condição de povo.

É no povo que estão as células estaminais, povo-útero onde se gera a placenta que alimenta o feto, que nada impede que chegue à luz como um nado morto. É daqui que se imagina ter de Pessoa saído o verso dos cadáveres adiados que procriam.

Mas o que mais embala o sentir comum é a ilusão, porque nada dói tanto como a lucidez. O lúcido salva-se da desilusão, porque não se ilude, mas está condenado a ver a vida na sua profundidade e crueza.

Não se sabe como é que as pessoas com a boca cheia de povo conseguem ter apetite para o almoço, mas quiçá sejam como uma gata que eu tive, que devorava a placenta logo que acabava de parir.

Bolçam povo com as palavras os políticos que mendigam aprovação; bolçam peçonha, fingindo defender o povo, os parasitas anti-sociais que fazem dos políticos os seus bodes expiatórios para amenizar as suas frustrações, negam aos políticos a condição de terem sido paridos pelo povo; os pendurados no povo têm a si próprios em tão elevada condição que se sentem os seus tribunos, embora inúteis, que no fundo suspeitam ser.

O que é que eu queria que o povo fizesse?

Mas eu não tenho receitas para o povo, nem coisas para dizer que sejam populares. Gostaria que os escravos que são escravos da sua própria condição conseguissem estar acordados pelo menos 10 minutos por dia, embora saiba que é pedir muito. Gostaria que os que conseguiram chegar a um meio despertar não se orgulhassem do umbigo, porque umbigo todos têm e há coisas mais acima, menos feias. Mas se calhar é também pedir muito.

O que eu verdadeiramente gostava, mas não sei nem posso, era chicotear-lhes os olhos, os ouvidos e a língua até que a vida lhes doesse. A vida, não a sobrevida.

Mas nunca me atreveria a despertar quem dorme a sono solto, nunca se sabe do mau feitio dos estremunhados. Se aplicarmos a lei da inércia, quem dorme não quer acordar, quem está acordado não quer dormir. E assim se estabelecem dois mundos inconciliáveis.

Os diamantes são foscos, quando estão adormecidos. Para lhes libertar o brilho é preciso lapidá-los. Não se lapida fazendo cócegas.

SEJAMOS, PELO MENOS, DESAGRADÁVEIS

Perguntam-me: que dar ao povo em lugar da mentira, e eu respondo: nada, ou antes, uma mentira maior, mais aconchegante, sabendo-se que as mentiras não se medem aos palmos.

O povo ama a mentira e odeia a verdade. É por isso que os políticos mentem, se tentarem falar verdade têm de mudar de profissão. A mais apropriada seria a de cangalheiro, dado que os mortos, tanto quanto se sabe, são surdos, mentir ou falar verdade é-lhes indiferente.

Deixemo-nos da comiseraçãozinha barata: o povo não é tadinho, não é puro nem depositário da virtude, é sobretudo depositário do nosso vício e desumanidade, é por isso que o progresso das ideias e dos sentimentos se faz, só pode fazer-se, pela humanização e pela expansão da consciência.

Não existe o homem natural, existe uma construção cultural a que chamamos Homem, construção sempre provisória, sempre inacabada.

Ter "peninha" do povo "tadinho" não é amá-lo, é ser permissivo com o mau gosto, o mau cheiro e o mau comportamento. Inquietá-lo é que seria amá-lo, que é afinal amar a nossa própria auto-realização, mas isso é muito perigoso, o que não significa que nos rendamos, há que ser, pelo menos, desagradáveis.

quinta-feira, 16 de maio de 2019

OS FAKEISTAS DO COSTUME

Quando eu andava no secundário – ah, ao tempo que isso foi! – corria uma espécie de lengalenga, anónima e popular, que pretendia tipificar os desempenhos sociais que iam do pobre ao cangalheiro, começando por dizer que o pobre trabalhava, o rico explorava-o, o soldado defendia os dois... e por aí fora. Eram dez tipos bem definidos, embora caricaturais, da estratificação social.

Com o advento das redes sociais, desenvolveu-se o vício de atribuir a alguém de renome todo e qualquer dito que nos caia no goto e nos dê na gana impingir aos outros, dobrando-os em reverência. Foi assim que o tal encadeado ou lengalenga que referi infectou – tornou-se viral, como agora se diz na arte de não pensar – o Facebook.

Como está também na moda culpar os político de todos os males, os fakeistas não hesitaram, trataram de acrescentar à velha lengalenga um décimo primeiro item, dizendo «os políticos vivem dos dez», o que rouba toda a graça ao texto original, que acabava em «o coveiro enterra-os a todos», que era uma forma de nos alertar para o nosso destino traçado, qualquer que fosse a posição na lista; o quão efémera e transitória é a vida. Ora, os fakeistas, adorando submeter os mais pela reverência, resolveram dizer que aquilo era o pensamento político de Cícero (106 a.C. – 43 a.C.), de quem, evidentemente, não leram sequer uma linha nem fazem a menor ideia do que tenha dito ou feito.

Acontece que, nas redes sociais – ou serão anti-sociais? – estas coisas são como mel para urso pardo, desata tudo a partilhar, até porque tendo aquele condimento tão apreciado de cascar em político, havia que aproveitar a oportunidade. Trigo limpo. Toma!

Apetece-me dizer: meninos e meninas, não batam mais no ceguinho, porque destapam a vossa ignorância que, aliás, não sentem como pecado, antes cultuam sem pudor.

Reparem: não é preciso ser um expert em hermenêutica para detectar a inconsistência deste texto de que falamos, basta não ter esquecido totalmente o que de Roma se aprendeu no secundário e ter dos conceitos algum discernimento. E, claro, ler com atenção e por inteiro. Por exemplo: Cícero nunca poderia dizer «o pobre trabalha, o rico explora o pobre» por duas ordens de razões. Primeira (conceptual): explorar, sem ser mina, é um conceito marxista, respeita a uma sociedade industrial; a segunda, é que para Cícero o rico não explorava o pobre, os pobres não produziam, eram alimentados pelo sistema. Não trabalhavam, só os escravos trabalhavam, e os escravos não eram ricos nem pobres, eram coisas.

Cícero também não poderia dizer «o político vive dos dez», porque não havia políticos profissionais e remunerados, a política era um dever cívico. Nenhum cidadão trabalhava, no sentido salarial do termo, toda a riqueza era produzida pelos escravos – quem mais escravos tinha mais rico era – e pelos soldados, através do saque das riquezas estrangeiras e submissão dos vencidos à escravatura.

Depois, metem-se ali advogados, como se a magistratura permitisse as profissões liberais, nascidas afinal na Idade Moderna, e os banqueiros, que só apareceram no século XIII.

Mas onde está o problema? Perguntam com ar inocente os que adoram partilhar sensaborias e aldrabices.

O problema é que desinformar é mentir, coisa que tanto se condena nos políticos; é corromper o entendimento. Entenderam?

Depois, a ignorância, quando cultivada, quando não combatida, é uma ofensa à inteligência e contribui para o apodrecimento e decadência da sociedade.

Ponham os olhos no Brasil e arrepiem-se.

quarta-feira, 8 de maio de 2019

PIOR DO QUE ACREDITAR EM GAMBOZINOS

Pior do que acreditar em gambozinos é a gente engasgar-se com um pelo de gambozino atravessado na garganta. Na garganta, pois claro. Pior ainda é não tossir, para se ver livre do inconveniente.

De certo que alguém, no fervor da crença que lhe instalaram, ou a que se rendeu para fazer conjunto com muitos, que encomenda os dias e pede graças e favores a mãe de Deus, como se Deus, pela Sua própria natureza, não fosse órfão, seria expectável que se engasgasse, e até que tossisse, para expelir o pelo. É raro que isso aconteça, porque crente é mesmo assim, diz o que diz sem tossir, porque lhe disseram ser dogma de crença (a que a igreja chama de fé). Ele crê, embora não entenda, porque é um mistério, e os mistérios são inexplicáveis e inacessíveis à inteligência humana. Se fosse assim, para quê falar do que ninguém poderá entender, a não ser para nos espantar e deixar-nos calmos no rebanho?

Do que é que eu estou a falar? Então não se está mesmo a ver?

Falo daquilo que dá imenso gozo aos teólogos (?) que nos querem tratar como diminuídos mentais, que Deus, afinal, teve mãe, sem que se possa admitir contradição com afirmar-se que antes Dele nada nem ninguém existia; que Ele tudo produziu, excepto a quadratura do círculo, que é enigma humano em desafio a Deus.

Claro que eu sou, decididamente um desmancha prazeres, quando me falam de Mistério – eu que acredito mistérios – procuro sempre confirmação, pergunto de imediato se é mistério ou apenas mentira ou efabulação.

Penso que terá sido também isto que Nestório perguntou quando o Concílio de Éfeso (431 D.C.), para grande escândalo de muitos cristãos, que se sentiram ofendidos na sua inteligência, resolveu criar um dos dogmas mais absurdos alguma vez congeminados, o Theotókos, gerador de inúmeras dissidências. O termo (grego) significa «aquela que gerou Deus». Tudo isto resultou de uma certa ideia mitológica difundida pelos cristãos do Egipto. Pra tornar racional tal desconchavo foi necessário fazer de toda a lógica uma batata.

Vejam bem o artifício: a coisa seria assim, Deus é uno nas suas três pessoas, todas elas coevas, isto é, o Filho é coevo do Pai e nenhuma das pessoas à anterior à outra. Explodiu-me neste preciso momento um neurónio. Ora se o Filho é Deus e goza com o Pai da mesma dignidade e da mesma anterioridade sobre tudo quanto existe, tendo vindo habitar entre nós através do ventre de uma mulher, que o deu à luz, essa mulher, Maria, é mãe de Deus. Explodiu-me outro neurónio. Entenderam, ou têm os neurónios em brasa?

Fica um aviso: se é católico e diz que não acredita nisto, corre o risco de ser excomungado, o que é meio caminho andado para ter a sua alma imaterial a arder nas chamas materiais do inferno. E é muito benfeito.

Permitam-me um conselho: digam que acreditam, abanem a cabeça e digam que sim, para fazer de conta.

sábado, 27 de abril de 2019

A INQUISIÇÃO PORTUGUESA E A DELAÇÃO PREMIADA, OU A GÉNESE DA BUFARIA

Numa altura em que os sectores mais retrógrados da sociedade portuguesa se penduram nos órgãos de comunicação social para enaltecer as virtudes da bufaria premiada, chegando ao cúmulo de convidar o representante máximo da magistratura justicialista do Brasil, uma figura que detesta o estado de direito e a democracia, um tal de Moro, convém lembrar episódios repugnantes da tenebrosa, apesar de alcunhada de santa, Inquisição.

Corria o ano de 1665 e o português nascido no Brasil, António Vieira, que foi um dos maiores vultos da cultura portuguesa e da Europa é levado para os cárceres de Coimbra pelos esbirros da Inquisição. Porquê? Porque um bufo (delator premiado), jesuíta que havia sido seu colega, Martim Leite, coadjuvado pelo prior da Igreja da Madalena disseram que António Vieira havia dito que «para a conservação do Reino era necessário admitir nele publicamente os Judeus». Perante isto, foi acusado de judaísmo.

Do interrogatório de Vieira, rezam os autos da tenebrosa instituição cristianíssima: «… logo foi mandado pôr de joelhos e se persignou e benzeu, e disse a doutrina cristã, a saber: o Padre-Nosso, Ave-maria, Creio em Deus Padre, Salve-Rainha e os mandamentos da Santa Madre Igreja… e tudo disse bem.»

Era a forma daqueles pigmeus, alguns deles analfabetos, humilharem o grande intelectual que toda a Europa louvava.

Foi interrogado, durante o ano de 1666, 28 vezes, sendo por fim determinado que «contra ele se procedesse como contra pessoa de cuja qualidade de sangue não consta ao certo». Depois de 26 meses de cárcere foi proferida a sentença contra um dos maiores oradores de sempre da cultura universal. O Padre António Vieira foi condenado ao silêncio para toda a vida e à reclusão em colégio da Inquisição, de que não poderia ausentar-se por motivo nenhum, sob pena da mais rigorosa punição.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

CIENTISMO

Causa-me algum incómodo esta mania acrítica de tudo se querer provar, por mais disparatado que seja, apelando despropositadamente à Ciência, esgrimindo umas vezes o «está provado» e outras o «não está provado», displicentemente, conforme as conveniências. Incomoda-me ainda mais os esgrimistas não terem formação científica e falarem como se a tivessem, enquanto distorcem os conhecimentos mais primários.

Eles não têm toda a culpa, alimentam-se do simplismo saloio que invadiu todo o espaço comunicacional e que trata a rama dos frutos como sendo o fruto. Impera uma cultura digestiva, feita de faits divers, que satisfaz os preguiçosos. Nos meios de comunicação social cultiva-se a ignorância pesporrente e servem-se excitações como se de informação se tratasse.

Nas chamadas redes sociais, o cientismo de fancaria prolifera – e aqui chamo cientismo à estulta invocação da ciência – e opta por tudo confundir. Para os mais profundamente confusionistas – não confundir com confucionistas – a distinção entre hipóteses e teorias não existe, nem teorias se distinguem de “leis”, e, nas hipóteses, nem sequer se distingue o lógico do absurdo e do delirante. Vem-lhes uma coisa qualquer ao bestunto, e pimba! É o «eu acredito assim», o «eu acredito assado» e o «é a minha opinião»… E isto é ainda o menos, que o pior é quando resolvem agredir-nos com os quanta para aqui e os quanta para acolá, repetindo até à exaustão os rodriguinhos, os lugares comuns recolhidos em leituras digestivas.

Meus amigos, eu também visito essas inutilidades, porque se as não visitasse não sabia que eram inutilidades. Para mim são mais indigestas do que tripas à moda do Porto. Tenho de curar esta doença de leitor compulsivo, porque lendo estas anormalidades só se aprende a desaprender; tanta leitura e continuo sem perceber patavina dessa coisa tenebrosa dos quanta. Eu sei que estou bem acompanhado, porque há milhares de cientistas conceituados que também não entendem e, com louvável humildade, dizem que não entendem. Há demasiada gente que diz que entende, mas não entende, não confessando com medo de ficar mal no retrato.

Meus queridos amigos que eventualmente sabem (e bem) dos quanta e hermetismos quejandos, não me envergonhem nem me agridam por eu não saber nada disso.

Ah! E não me façam as habituais perguntas que já contêm em si as respostas, as mais das vezes de engano puro e manipulação primária, do tipo: será que os homens descendem das abelhas?

Mas é evidente, está cientificamente comprovado, dizem os patuscos das redes sociais. Então não se está mesmo a ver que os homens são muito abelhudos?

domingo, 31 de março de 2019

A SÍNDROMA DA GALINHA DOS OVOS DE OIRO

Preparar exércitos de obreiros para a desocupação e o desemprego, sem sequer lhes poder entregar a mais pequena semente de futuro é a tarefa ingrata do professor, nos dias que correm. O professor não pode mais dizer àqueles que vão herdar o mundo que se anuncia, de desocupados, para estudarem com vista a um emprego.

Quando falo em semente do futuro, nada de equívocos, porque a verdadeira semente do futuro é a alegria, não a esperança, como tantos querem crer e fazer outros acreditar. Não é honesto querer colher o que não se plantou, ou plantar cardos e querer colher rosas.

Esperar sentado pela orquestra que nos há-de encher de júbilo é plantar o tédio e nada mais. Não há músicos, foram todos despedidos.

Muita esperança se tem depositado no modo de produção do ensino, esperança, aliás, cultivada de pé, e não na espreguiçadeira, mas nem sequer podemos exclamar, para nos compensarmos: ao menos produzimos gente esclarecida e a desocupação é apenas provisória, aumentem-se as «competências» – ai o jargão enganador – e tudo será melhor…

Ora, nem os desocupados são gente esclarecida – o medo não deixa e os professores não podem nem sabem – nem a desocupação é provisória. Em breve estaremos na crista da onda do grande paradoxo do sistema. O paradoxo é que os senhores que delinearam as regras do jogo, que consistia em pagar o mínimo ao trabalho para que o capital crescesse ilimitadamente – regra ainda em vigor – assustam-se agora (e com razão) com a síndroma da galinha dos ovos de oiro.

Pensou-se resolver o problema pela transferência massiva da riqueza geral para os cofres do gripo restrito dos que usucapiram o mundo, através do truque chamado de austeridade, que se segue aos grandes momentos de transferência, que são as crises, mas a coisa parece que vai dar para o torto, porque a galinha tem gosma e não põe ovos suficientes.

Para que a galinha não morra e os ovos não acabem, virá aí um tempo em que os donos do jogo vão pagar para que o consumo não se extinga e as montras da abastança não sejam vandalizadas.

Dentro de 25 anos, 90% dos humanos que vivem nesta Europa que vai de S. Francisco a Vladivostoque não terão qualquer emprego. Não serão propriamente desempregados, porque nunca perderam o emprego, estão fora da produção de nascença, mas não necessariamente do consumo. Se tudo correr bem, poderão ocupar-se com a vida a tempo inteiro; se correr mal, não há que preocupar-nos, haverá ainda o recurso às cavernas.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

DAS IDEOLOGIAS DOS FARSANTES

Histon, 3 JAN 2019

Pelo simples facto de sermos humanos e vivermos em sociedade, todos aqueles que não são mentecaptos têm ideologia. Há, porém, os que dizem que não têm ideologia. Mentem. O que eles não têm, pelo que dizem, é a ideologia daqueles que eles odeiam. Têm ideologias religiosas, sociais e políticas. E os que mais gritam e mais odeiam têm a pior das ideologias, que é a ideologia excludente de todas as outras. Foi assim com a Inquisição, é assim com Bolsonaro e as suas milícias evangélicas. Será assim um pouco por todo o mundo se as pessoas de bem não reagirem. A extrema direita, que se estriba nos instintos primários das massas ignaras e ululantes, está em ascensão. É preciso chamar os bois pelos nomes. O IV Reich não é inevitável, mas é muito provável. Há demasiados bolsonaros no mundo. A extrema direita é na sociedade o que o cancro é no corpo humano: Thanatos.

ENTRE VIVOS E MORTOS

Histon, 3 JAN 2019

Há pessoas tão vaidosas, tão autoconvencidas, tão cheias de si que nos jogam na cara a todo o momento aquela frasezinha bacoca do «eu cá penso pela minha cabeça». Ora, admitindo que as cabeças pensam – e não creio em tal – temos que presumir que o falante está equivocado, mente ou é autista, porque só autista pensa pela própria cabeça, ou lá o que seja que serve para pensar…

As pessoas que verdadeiramente pensam, que são poucas, e nem sequer é muito importante que o façam, fazem-no com o máximo de cabeças que possam, porque não são tolas.

Infelizmente – ou felizmente, vá-se lá saber – a maioria não pensa, ecoa, mas dado que não dá que assim seja, fala como se tivesse acabado de inventar a roda. É assim que os quase mortos se jugam quase vivos, enquanto os vivos encolhem os ombros e fazem ouvidos de mercador.

Faz tanta falta quem nos possa ensinar a não pensar, para que possamos, com um pouco de silêncio, ser pensados!

Mas como? Se na escola os professores perguntam aos meninos: o que é que o menino pensa? E a cabeça do menino começa a crescer, cresce tanto que o menino fica incapaz de perguntar, torna-se adulto, adultera-se, tem a cabeça cheia de dizeres prontos a debitar.

O menino morreu. Da sua boca saem mortos-vivos à procura de jazigo.

DAS BOAS MANEIRAS

Histon, 3 JAN 2019

O instinto de sobrevivência é, nos seres vivos, algo que poderíamos comparar com a inércia dos graves. Passe a caricatura, a inércia é isto: o que se move não quer parar e o que está parado não se quer mover. Assim, do mesmo jeito, o que está vivo não quer morrer e o que está morto, morto está.

Pois bem: nos humanos, o instinto de sobrevivência gera a necessidade da manutenção da vida e, consequentemente, o medo dos obstáculos à sua satisfação, seja advindos da natureza, seja do confronto com outros viventes. Isto tem sido resolvido de duas formas: agride-se ou foge-se; agride-se aquele que tem o que seria melhor sermos nós ater, agride-se a natureza para lhe extrair o sustento. Foge-se se os obstáculos são maiores do que a nossa coragem, se aquele que queremos submeter ou roubar é mais forte do que parecia. Acobardamo-nos, tornando-nos vítimas, ou esperamos melhor ocasião.

Esta é a condição primárias, atávica, mas o homem civilizado é ainda assim, só que polidamente quanto baste, com boas maneiras, sempre que possível.