domingo, 12 de março de 2017

DEIXEM-ME TER UMA BIRRA

 

A NET, na sua vertente «redes sociais», é uma espécie de correio da manhã, sem hora de fecho da redacção, mas maior, as mentiras é que são do mesmo tamanho. Tal como as manchetes excitantes do CM raramente correspondem à verdade, assim é com a NET: o hoax substitui a notícia. Tal como um crime (no CM) se divulga, repete e comenta semanas a fio, e se recorda depois a quando do julgamento, para que todos pensem que é o fim do mundo, se excitem e tremam de medo, também a NET mói e remói tudo o que excita, dando de comer, na expressão do Papa Francisco, aos que se alimentam de excrementos.

A NET é tal qual como uma taberna, só que enorme, global e sem taberneiro designado, porque somos todos nós que servimos os copos com que nos embebedamos uns aos outros; bebemos, naturalmente, da zurrapa a que vínhamos habituados de outras andanças. Quando pedimos bebidas finas ninguém nos sabe indicar onde fica a garrafeira.

Os maus hábitos aqui são os mesmos de qualquer taberna castiça, a má-criação é a mesma, as consequências é que são mais suaves, as naifas não são de aço, forjam-se nas injúrias, calúnias e impropérios.

Então, como atrás dizia, na taberna (ou tasca) internética onde não há taberneiro de serviço, há vinho mas não há petisco. Esta taberna é realmente especial, não apenas pelo tamanho, mas porque não há ASAI que por aqui passe a passar multas e a mandar lavar o chão. Como em todas as outras, muito se grita, cospe-se no chão e para o chão se atiram as beatas. Quem assim não proceda é betinho, tonto ou coisa que lhe valha.

Na taberna tradicional podemos pedir ao taberneiro que ponha na rua o tipo que está a vomitar para cima de nós; aqui, não, porque os taberneiros – já o dissemos – somos nós todos a bater nas teclas como quem avia ginjinhas.

A Internet é um belíssimo instrumento de impensamento e despensamento único, por mais que nos iludamos de pluralidade. É um apurado instrumento de infantilização e é tão bom nisto que até nos permite ter birras.

quarta-feira, 8 de março de 2017

SEXO LIBERTINO E PURITANISMO

VN 08 MAR 2017

A propósito de um jogo sexual muito praticado em Espanha, entre os jovens, ver em http://www.dn.pt/sociedade/interior/jogo-do-cais-a-brincadeira-sexual-que-esta-a-preocupar-as-autoridades-5595201.html, algumas jovens, que quero crer bem-intencionadas disseram coisas assim:

«Para mim isto é assustador... e ainda mais é quando há pessoas que nos comentários à notícia defendem que isto é a liberdade sexual dos jovens e que se deve pactuar com isto... mais uma vez não se olha para estas situações como o princípio da exploração sexual... da exploração humana...»

«É horroroso. O conceito de "liberdade" completamente deturpado... é triste que haja jovens a crescer assim... com a noção de que a "liberdade" que podem escolher é a liberdade de serem objectos sexuais..»

Estas visões acerca do «desvio» dos tais jovens são tão distorcidas, tão tipo Facebook, tão carregadas de um puritanismo saloio – chegou-se mesmo à comparação com a pedofilia – que me vi obrigado a responder assim:

Numa sociedade promíscua não se pode esperar que os jovens o não sejam. Mas não se preocupem: ser jovem é doença passageira que não precisa de cuidados médicos, basta esperar pelo reumático. E não vale a pena assustarmo-nos nem usar os chavões da moda. Por exemplo, nesse tal jogo badalhoco ninguém é objecto sexual, machos e fêmeas «brincam» livremente e em igualdade. Também não vale a pena perorar sobre liberdade, porque a liberdade não é dizer o que nós julgamos que os outros devem fazer. A liberdade é acertar e é errar. Não é ilimitada, como é óbvio, mas não pode ser limitada apenas porque sim. Mas, nestes casos de libertinagem, seria bem melhor tentarmos perceber do porquê. Por exemplo, só na cidade de Madrid há mais clubes privados de trocas de casais do que escolas e associações culturais em conjunto. O espanto (e o susto de muita gente) deriva de só se assustarem e espantarem quando as redes sociais e os media dão o lamiré. Se fossem espreitar a vida, deixavam de se assustar e de se espantar. Estas coisas, há uns anos atrás, eram quase exclusivas das classes «altas», hoje, com a globalização (digamos assim) chegou às classes populares. É apenas um fenómeno quantitativo, não é qualitativo. E descansem, o mundo não vai acabar, antes pelo contrário, vai crescer. A lógica maior é a dos interruptores, umas vezes estão para cima e outras estão para baixo. É a vida.

O mundo não enlouqueceu. Está como vem sendo há muito tempo. Não havia era NET para mutuamente nos assustarmos. Até parece que esta gente nunca leu a poesia lírica e satírica dos nossos civilizadores romanos, nem das orgias e bacanais da Antiguidade Clássica, nem das Fogueiras de Beltane, do mundo celta. Estas puritanas, que eu parto do princípio que são bem-intencionadas, protegem-se de todos os perigos nas suas sacristias e gostariam que todo o mundo fosse uma enorme sacristia.

Devemos falar de liberdade e devemos falar de educação e de formação. A liberdade não é nem pode ser uma concessão, mas de uma conquista e de um exercício, que não implica (nem poderia implicar) fazer coisas certinhas. Exercer a liberdade tem de ser acertar e errar. Quanto à educação e formação, pergunte-se aos pais, aos professores, às escolas, aos media, aos legisladores, etc. O que fazem, o que privilegiam, o que incentivam. Depois, quando se trata de sexo a conversa começa quase sempre envenenada e enviesada. Principalmente devido ao puritanismo e ao moralismo. Por fim, para afastar os sustos, devo dizer-lhes que a referida rebaldaria é tão antiga quanto a humanidade, não vinha é no jornal e, por maioria de razão, na NET. A minha adolescência foi há 60 anos e assisti a coisas dessas. E piores. Por isso, não se assustem, lembrem-se do que diz a Bíblia (no Eclesiástico): o que é já foi e o que será também já foi.

E tenham muito cuidado: tal rebaldaria nada tem de parecido com pedofilia, pois não há abuso nem coacção. Depois, não se trata de crianças, mas de adolescentes (e até de maiores). Acresce que, a partir dos 16 anos, não existem quaisquer inibições de relacionamentos sexuais consentidos, mesmo que com maiores. Podem enojar-nos certos comportamentos, mas não somos donos dos outros. Não estamos a falar de pessoas incapazes, nem de pessoas que obrigam outras a fazerem o que não querem. Estamos num campo muito sensível. Livremo-nos de moralismos e façamos uma peregrinação a Bertrand Russell e William Reich, sobre este assunto

UM OLHAR DE VIÉS

VN 08 MAR 2017

Convém lembrar aqui o que tantas vezes tenho dito: as ditaduras minoritárias fazem por transformar as maiorias em carneiros que se pastoreiam e tosquiam; as ditaduras de maioria, ditas democracias, fazem dos carneiros que balem mais alto chefes de rebanho, pregadores de redil a bem da tosquia e da boa lã.

Aquilo a que o vulgo chama democracia é apenas um sistema sufragista que não põe em causa os poderes fácticos. Neste sistema, o voto de um bêbado tem o mesmo valor do de um sóbrio; o voto de um assassino vale o de uma pessoa de bem.

É este sistema que permite os Trump e os Hitler. A sua característica é a glorificação do mau gosto, do mau cheiro e da rasteirice.

Os bem-pensantes, que em boa verdade o não são, apenas assim se julgam, usam e abusam, quando as coisas não saem do jeito que gostariam, da lamentação ferrugenta de que o povo não sabe votar. Ora, é claro que o povo sabe votar, é fácil, demasiado fácil: é pôr uma cruzinha num quadradinho; o que o povo não sabe é da inutilidade do seu voto; não sabe que com ele reza a impotentes santos de palha.

Um dos grandes problemas das análises políticas é a divisão povo/políticos, como se os políticos fossem extraterrestres e não emanações do povo, reflexos do que nele há de melhor e de pior. Depois, o que acontece é um fenómeno de retroalimentação que, quando no sentido do bem, conduz ao progresso, quando no sentido do mal à decadência.

A grande diferença entre os políticos efeitos e os cidadãos anónimos é que uns estão na montra e os outros não; uns estão perto da massa e os outros não.

Não é preciso lembrar o ditado popular – ou é? – de que a ocasião faz o ladrão. Sendo assim, nem os manetas se isentam, porque na ocasião usam os pés, na mesma lógica de que quem não tem cão caça de gato.

Combater o ladrão e não impedir a ocasião é trancas à porta depois de casa roubada.

Os políticos têm exactamente os mesmos defeitos do povo em geral a que pertencem, porque foi desse útero que vieram.

A indignação pelo mau comportamento de figuras públicas vem de sectores minoritários, porque se viesse de claras maiorias não haveria corrupção, toda a gente estaria atenta.

O abastardamento social que caracteriza as sociedades decadentes é bem possível que seja uma necessidade, pois que sem estrume não se criam novas e viçosas plantas.

Quando os populares chamam ladrão ao político que elegeram e não impediram que roubasse estão apenas a esconjurar os seus próprios fantasmas, os seus esconsos pecados. Atente-se também na permissividade expressa no célebre e estafado slogan do rouba, mas faz.

Quem vota, não vota por raciocínio, por conhecimento, mesmo que ligeiro, de qualquer programa eleitoral, vota por identificação.

Com certeza que haverá coisas que o povo odeia e que poderão condicionar o seu voto no sentido do «voto neste para aquele não se ficar a rir». Não será má vontade dizer-se que na lista daquilo que o povo mais odeia não estará nem a violência nem o roubo. É verem-se os resultados das votações em gente pouco recomendável. O que o povo odeia sobretudo é a verdade, a liberdade e o bem-estar alheio.

Quem vota exprime – assim como quem bota vela no altar – o desejo de boa vida com pouco esforço. Acontece que os «pobres» eleitos, não podendo dar disto a todos, servem-se do ditado popular, que os eleitores sabem de cor, que quem parte e reparte e não fica com a melhor parte ou é tolo ou não tem arte.

AS POSTAGENS E OS INDIGNADOS

VN 08 MAR 2017

Detesto o que quer que seja em data certa. Sobretudo detesto o dia dos pobrezinhos, o dia da mulher, o dia da criancinha, o dia dos indignados…

São exercícios de lavagem de consciências. Tem muito a ver com a crítica dos evangelhos aos fariseus, que davam esmola de modo que todos vissem. Esta esmola dos poderosos – este dia de qualquer coisa – é de tal modo farisaica que não se entende como os pseudo-beneficiados se sentem tão contentinhos.

Que bom seria podermos cantar com a Lena D'Água «todo o dia era dia de índio».

Mas a gente fica pacificada, coração ao alto. Há um dia – ou mais – para sermos todos bonzinhos. Que pena o ano ter tantos dias e nem todos se prestarem para treinarmos a bondade que não temos, se não houver dia para isso.

Indignem-se, dizem as correntes de mensagens electrónicas que nos enchem a caixa do correio. E a gente faz forward, comodamente sentados. A superficialidade dum tempo sem tempo, a indignação digital, o carpir como quem mia na esperança de receber um carapau, a solidão disfarçada na ilusão de que o mundo está à escuta do que dizemos, falar para não estar calado, exigir dos outros a santidade banal e pós-moderna de enfeitar o mercado das palavras...

Vamos apodrecendo na vida adiada que nem a esperança concede. Esperamos sentados. Indignamo-nos sem consequência. Toda a nossa raiva se esgota quando agredimos o teclado e premimos o rato como se o estrangulássemos.

Olho as campas rasas do imenso cemitério do Facebook e só me ocorre perguntar: há por aí algum corpo que ainda tenha sinais de vida?

Um cadáver levanta-se e vai à janela. Uma velhota tenta atravessar a rua, arrastando um cão pela trela. Um automobilista apressado buzina-lhe ferozmente e atira-lhe duas bocas foleiras.

O cadáver deixa o mundo como está e volta indignado para o teclado.

Será que isto que estou a dizer pode motivar indignações avulsas nas redes sociais? Não creio, até porque não comecei este escrito com a ordem habitual do indignem-se. E se não houver essa ordem, ou esse lamiré, nada feito.

De qualquer modo, as indignações postadas em forwards da NET pouco sensibilizam as pessoas verdadeiramente sensíveis. Talvez eu nem sequer pertença a esse pequeno número, mas o facto é que também pouco me sensibilizam, mesmo que às vezes me incomodem, num incómodo assim como ter piolhos. Mas tal como há remédios extremamente eficazes para nos livrarmos dos piolhos, há nos nossos teclados uma tecla tão boa quanto o Quitoso, a tecla DELETE.

Quem sabe usar o delete não é atingido pelas indignações de faz de conta.

Sabem uma coisa? Perdi a capacidade de me indignar. Os indignados têm-me esgotado a paciência e a sua hipocrisia gela-me o sangue. Sinto-me um crocodilo fora de água e as nuvens toldam-me o sol.

Mas não posso deixar de me sentir incomodado quando oiço os vociferantes de pantufas quentes a arengar contra refugiados e emigrantes, no seio dos quais, dizem eles com manha, podem vir terroristas. Alguns dos vociferantes têm-se em tão boa conta, sentem-se tão acima de tudo e de todos que discursam acerca da subhumanidade que decretam para quem sofre, foge e não veste bem. Tais inquisidores bateriam palmas a qualquer solução final, mas não o declaram porque, por enquanto, parece mal…

Vão-se indignado com coisinhas de forward e de delete e nem querem ouvir falar que descendem – eles e todos nós – de violadores, antropófagos e homicidas; passam adiante as páginas de que não gostam dos manuais onde se conta a História da Crueldade Humana.

A compaixão não é o seu forte e a crueldade não lhes sai do íntimo.

Ai, quanto eu gosto do Pessoa! Quanto eu entendo e comungo da sua aversão à companhia. «Que maçada, quererem que eu seja de companhia», eu que não me indigno com quanta coisa que postiçamente se usa para dizer ao mundo e à cidade que estamos vivos e temos sentimentos que extravasam o nosso umbigo, e temos compaixão, embora apenas pela ordem da batuta. Conforto é o que queremos, esconjurar a dor ainda mais.