terça-feira, 26 de janeiro de 2021

FACTURAR

Nascemos de borla e toda a vida é feita a pagar as facturas do destino, seja o destino aquilo que for, determinado ou em construção. É assim com os indivíduos, com os grupos, com as nações, com a humanidade. É assim porque não pode ser assado, como diria o César Monteiro.

Não é preciso ser filósofo, psicólogo nem sociólogo para entender o modo de ser do nosso povo: está tudo no Pátio das Cantigas. Portugal é um pátio das cantigas e o Evaristo casa a filha com o marçano só para os outros não se ficarem a rir.

Os mais avisados, aqueles que não tendem a fazer «mééé», devem perceber que há sempre uma factura por pagar. Por exemplo, quem se ilude paga a factura da desilusão. Então, é de bem-avisado nunca nos iludirmos, e não escapamos à conta substituindo uma ilusão por outra.

As pessoas sensíveis estão muito tristes com a ascensão do carroceiro chegano, mas, se não fossem susceptíveis a iludirem-se, saberiam que atrás da orelha de cada português há um Salazar que sussurra. Isto não seria grave, se não ligassem ao sussurro. Haverá, porventura, quem não tenha ouvido no espaço público bolçar vómitos do género: «o que aqui faz falta é um Salazar»?

Quem nunca ouviu é porque é muito desatento; eu cheguei a ouvir: «isto só lá vai com dez salazares, que um já não chega».

Mas conto-lhes um segredo – que já não é segredo porque o tenho escrito muitas vezes – O Salazar nunca existiu e o chegano Desventureiro também não existe. Para entenderem melhor o que quero dizer, é aconselhável visitar (ou revisitar) a teoria dos arquétipos, de Carl Jung. Também ajudará perceber a psicologia de Gurdjieff.

Salazar é, pois, um arquétipo que um grupo de pessoas pode invocar, sintonizando-se com uma dada forma de ser. Os religiosos que não fiquem ofendidos, mas quando se retira dos Evangelhos que Jesus teria dito: quando vos reunirdes em meu nome eu estarei presente, é também disto que estamos a falar. Em termos metafísicos e teosóficos digamos nós que Jesus e Salazar são «elementais», isto é, habitantes da nossa mente. Os nossos sentimentos – sejam baixos ou elevados – são susceptíveis de materializações; quando em invocações colectivas podem ser observados, e os participantes desse ritual ficam despidos de individualidade, podendo ser conduzidos para actos animalescos, actuando como as abelhas que julgaram em perigo a sua colmeia.

Dizia Gurdjieff que só dez por cento dos humanos se encontram despertos, concluindo que os outros noventa por cento estariam adormecidos, mas aqui eu acrescento um ponto: há outros dez por cento que acordaram o demónio que há em si; não despertaram nem são susceptíveis de o ser. Estes, em termos religiosos, dir-se-ia que entregaram a alma ao demónio; são escravos do id freudiano, regem-se pelo princípio do prazer através dos mais baixos instintos, chegando a sentir prazer na dor que produzem e inclusive na que sofrem.

Estes dez por cento de filhos do pesadelo – e a percentagem será mais ou menos esta em toda a parte – tendem à actividade ruidosa e agitada das colmeias e dos formigueiros.

Se forem dez por cento, o partido dos cheganos tem ainda muito por onde crescer em termos eleitorais, basta que o seu arquétipo, o seu elemental lhes fale alto e bom som ao pior que os habite.

Havia um pastor que tinha dois cães. Um era uma fera terrível, o outro uma doçura. Não os podia juntar. Mas ele sabia que podia resolver o problema, bastava não alimentar um deles; se os juntasse, então, a fraqueza de um seria a vitória do outro.