segunda-feira, 19 de setembro de 2016

UMA QUESTÃO DE ARITMÉTICA

 

Estava a ler o Expresso da semana finda e deparo-me com um problema intrigante de quantidades, que já refiro mais adiante. De imediato, por causa das dúvidas, quero confessar a minha gigantesca inaptidão para as matemáticas. Aliás, fico confuso quando oiço a facilidade com que os debitadores televisivos das aritméticas de assustar nos falam de milhões de euros, dólares, libras e coisas assim. Fico confuso, espantado e raramente calo a minha grande admiração por tão insignes crânios. Bem hajam por iluminarem a ignorância de quem não consegue ir além da contagem dos tostões e de usar os dedos para não se enganar nas contas.

Tenham paciência, que já falo do que li no Expresso. Mas o que li – suspense! – levou-me a recordar uma lenda a propósito do inventor do xadrez – o jogo, não a prisão –, num tempo em que não havia televisão nem debitadores dependurados da pantalha a falar de milhões. Foi o mal do rajá, marajá ou lá o que era o potentado indiano que quis premiar o inventor do jogo do tabuleiro dos 64 quadrados. E este 64 aqui é muito importante, porque o ladino terá dito ao seu soberano que não queria oiro nem honrarias, gostaria de ser pago em grãos de trigo; bastava-lhe um grão pela primeira casa do tabuleiro, dois grãos pela segunda, quatro grãos pela terceira, oito grãos pela quarta e assim sucessivamente até à sexagésima quarta casa.

O rajá, marajá ou lá o que era o tal potentado, contentíssimo por julgar poupar na fazenda, sendo tão incompetente quanto eu para as aritméticas, matemáticas e correlativos, disso imediatamente que sim, e bem sabemos que é suposto palavra de rei não voltar atrás. Claro que o dito cujo ficou tão espantado como eu ficaria quando os seus conselheiros fizeram a conta. Então não é que seriam precisos 18.446.744.073.709.551.615 grãos de trigo, que eu não sei como se lê nem quantos milhões de toneladas dá? Pobre do nosso rajá, marajá ou lá o que era o forçado pagador da promessa.

E pobre da nossa querida doutora Marques Vidal, que tem o dever de perseguir os suspeitos do povo e do correio da manha até às últimas consequências. Então não é que na telenovela socrática, para além de outros números descomunais, ela refere haver NOVE MILHÕES de ficheiros informáticos para analisar?

Espere lá doutora, não seja como eu nem como o rajá, marajá ou lá o que era o tal. Adia o epílogo da telenovela por mais seis meses? Vamos lá a contas: um técnico altamente especializado, trabalhando oito horas por dia, sem outros cometimentos, e levando UM MINUTO para verificar cada ficheiro precisaria de QUARENTA E OITO ANOS.

Já agora, não seria melhor mudar o nome à Operação Marquês e chamar-lhe Operação Marajá, ou grão de trigo, ou cheque mate. Metam lá o homem no xadrez, para o povo ficar contente, e deixem-se de tretas.

ABDUL CADRE

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

TOTALITARISMO E DEMOCRACIA

 

Vendas Novas, 11 de Setembro de 2016

Aceite, consentido ou imposto, todo o pensamento único é, insofismávelmente, a fórmula codificada da implementação do totalitarismo. Nas sociedades sufragistas, que invocam em vão o santo nome da democracia, a prática é, em nome das maiorias, sufocar as minorias até que se tornem invisíveis, escamoteando-se que a opressão, o totalitarismo e a tirania não são um exclusivo de minorias armadas até aos dentes. Tirania é tirania, seja exercida por poucos seja exercida por muitos.

Sociedades de maiorias e sociedades de massas, mais estas do que aquelas, tendem a aceitar qualquer tipo de totalitarismo e estão sempre prontas para o expurgo das diferenças. Os demagogos sabem bem disto e é-lhes muito fácil arrebanhar multidões: vendem à pequena burguesia o pronto a pensar e às classes laboriosas o pronto a dizer, arranjam um inimigo a quem se retira a humanidade e está pronto o estrugido.

Com sufrágio ou sem sufrágio, com inimigos unificadores ou sem eles, o pensamento único impõe-se e torna-se, não uma rotina, como alguns dizem, mas a rotina, o caminho único, o hábito único, o comportamento único; fora destes espartilhos é a heresia e os autos-de-fé. Toda a heresia merece ser castigada. Era assim na outra Idade Média e é assim na actual.

Nesta Idade Média Pós-moderna, seja a Leste seja a Oeste, aposta-se forte nos mecanismos securitários. Na boca dos mandadores deste baile mandado a segurança não passa de um eufemismo que se pode traduzir por alienação das liberdades para espantar o medo. Ora, acontece que, quanto mais queremos calar o medo, mais medo temos, o que nos leva a alienar mais e mais liberdade até que ficamos tão «seguros», isto é, tão agrilhoados que acabamos por ter medo de ter medo. Foi isto que aconteceu nos países ditos do socialismo real e é isto que está a acontecer nos países anti-socialistas integrantes do Império Alemão, a que os ingénuos chamam União Europeia.

Durante o decorrer da campanha actual para a presidência americana, O candidato marginal ao sistema Bernie Sanders dizia algo indesmentível: «Tudo aquilo que temíamos no comunismo: perder as nossas casas e posses, economias, ter de trabalhar duro por um salário miserável realizou-se graças ao capitalismo».

O pensamento único está aí, as fogueiras autênticas de antigamente, não. As que há agora têm outra e diversificada natureza. Por exemplo, a ninguém é permitido, sem a risota geral, pensar fora do sebentismo académico da ideologia do mercado, sucedânea das religiões salvíficas de paraísos impalpáveis. As Universidades formatam os novos sacerdotes da religião do mercado com o mesmo afã com que a igreja romana formatou crentes e incréus ao longo dos séculos. A formatação deixou tantas sequelas que ainda hoje os ateus não conseguem negar outro deísmo que não seja o da Bíblia. De semelhante e paradoxal jeito sofrem os comunistas que sobram por aí: todos eles falam economês com a mesma fluência e convicção dos mandadores e dos mandatários do sistema único em vigor. Também eles assimilaram muito bem o «não há alternativas», mesmo que se retorçam a dizer o contrário. Vejam bem como o pensamento único é mais ameaçador do que o aquecimento global!

Esta aceitação, esta subordinação a pensar segundo o que está instituído e de nos comportarmos como se espera que façamos constitui uma doença grave de características epidémicas, que pode levar à morte da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, tendo como consequência o impedimento da solidariedade, da tolerância, da aceitação do outro e das diferenças, da empatia, da compaixão, do humanismo.

Os sinais estão por toda a parte e só os não vê quem optou por pôr – voluntariamente ou por ignorância – as talas mentais que já não é preciso colocar-lhes à força. Veja-se, por exemplo, como a «indignação» se tornou um produto internético inconsequente e como há tanta gente sentada ao computador a indignar-se com os que não pertencem aos hábitos e aos comportamentos inerentes ao totalitarismo da ditadura democrática. O pensamento único ensina-nos que é bom que nos indignemos, não com o mal, mas com a dessincronia; temos todos de marchar com o passo certo e apanhar muitos Pokemons.

ABDUIL CADRE