segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

RESPOSTA A UMA AMIGA, INTERROGANTE DA MINHA LOUCURA.

 

Muitas vezes me referiram um certo personagem que teria dito «quanto mais miséria mais obediência». Não digo o nome porque o não pude confirmar sem equívocos, mas como a frase vale por si, aqui está, e penso que muitos políticos a têm gravada no subconsciente, como cartilha. Neste dizer, quero entender miséria não só material, mas sobretudo cultural e comportamental. A gente habitua-se a comer pão e depois diz que gosta de pão. Habituamo-nos a dizer mal e passamos a gostar de dizer mal. Se nos habituarmos a desenvolver o espírito crítico, desenvolveremos as formas do hábito e do gosto. Talvez os amigos à nossa volta digam eu também quero e os inimigos, ao atacarem-nos, nos obriguem a desenvolver mais e mais os nossos gostos, porque melhor do que amigo só inimigo.

Orlando Vitorino, convocado um dia pelo governo para dizer o que proporia para o ensino e para a cultura, disse para o Primeiro-ministro: «… o melhor que há a fazer é fechar todas as escolas, a começar pelas universidades». Sabe-se que o não mandaram para a cela acolchoada, mas não o convidaram mais para desarrumar ideias. Nem perceberam. Ou não quiseram perceber. Não se pode perguntar o que fazer com o ensino, com as escolas, sem primeiro definir para que serve a escola. Se é para formar caixas de supermercado, então o Belmiro de Azevedo que trate disso. A escola simplesmente utilitária forma produtores consumidores, não forma seres pensantes e críticos. Não forma cidadãos de corpo inteiro e ampla alma. E este é o grande busílis.

Além disto, seguindo eu, embora adaptadamente, o pensamento de Gurdjieff, aceito a sua ideia dos homens adormecidos e dos homens acordados. Dizia ele que 90% da humanidade dorme e só dez por cento está acordada. Os que estão acordados têm dificuldade em acordar os que dormem, porque eles não sabem que dormem, julgam-se acordados. Nesta concepção, os que estão acordados têm a capacidade de agir; os outros mais não podem do que reagir.

É preciso muito cuidado com os que dormem, se os tentamos acordar, podem tornar-se agressivos, Então, só nos resta – se é que somos dos acordados – tornarmo-nos vírus patogénicos da doença que julgamos boa e sermos altamente contagiosos. Mas nada de acreditar muito na evolução, porque as coisas não mudam por evolução, mudam por revolução. Não a revolução pelas armas, que essa substitui um grande mal por um mal idêntico, de sinal contrário. Não quero negar o Darwin, quero dizer que mesmo que eu ponha os pés de molho durante anos não fico com pés de pato. Ou patas. Não fico mais apto para os dilúvios, fico menos apto, devido ao reumático,

Então o contágio, do meu ponto de vista, faz-se por focos, por círculos que se alargam. Se estes círculos se integrarem no mercado, se se deixarem contaminar pela ideologia de mercado, nada mudarão; a sociedade mudá-los-á. Tem acontecido a muitas organizações cheias de boas intenções.

ABDUL CADRE

domingo, 11 de dezembro de 2016

NO DESINFELIZMENTO DA VIDA

 

Era uma vez uma jovem bonita e bem-casada, vivendo aquela felicidade que só a classe média despreocupada, usando óculos escuros, consegue. Por não ter outros afazeres, olhava as montras da baixa com o olhar astuto dos viciados em compras. Eis senão quando, dobrando uma esquina, numa montra provocante, uns sapatos lindos de morrer se puseram a chamar por ela. «Não posso!», exclamou. Este não posso não quer dizer exactamente que não podia. Vocês sabem disso, não sabem?

Entrou na loja de rompante e gritou para o empregado: «quero aqueles sapatos». Não descrevo os pormenores do calça e descalça. Foi o trivial. De relevo apenas que, com os sapatos novos nos pés, pegou com as pontas dos dedos e ar enjoado nos que trazia e disse para o empregado: «Olhe, se não se importa, deixo isto para os pobrezinhos, percebe». Ela não disse percebe, claro, disse pecebe, que é como se diz em chiques.

Não esperou pela resposta e desandou em direcção ao parque de estacionamento onde deixara a viatura. Estava mais feliz do que no dia em que se casara.

Não estavam percorridos 500 metros e os sapatos lindos – quem vê caras não vê corações – desataram a morder-lhe os calcanhares com uma fúria que nem cão, desses das raças proibidas Mais 500 metros e não se conteve, atirou-se para o chão e desatou a berrar: «Ai, sou tão infeliz, que desgraça a minha!» Gritava que se desalmava e muita gente se acercou. Pobrezinhos, com certeza. «Que foi, minha senhora, morreu-lhe alguém?», perguntou um dos mirones mais afoito. Que não, que era bem pior, que estava mais infeliz do que quando lhe morrera a mãe.

E talvez não fosse caso para menos. Descalçou um dos sapatos e ali estava uma bolha enorme no calcanhar rosado.

ABDUL CADRE

DESOPINIÃO

Eu sei, eu sei que é muito difícil, mas creiam que faço um esforço muito grande para não ter opinião. Ter umbigo já me basta e sobra. Que querem? Não gosto de ter o que todos têm, incomoda-me. Mas será que realmente têm?

Às vezes dou comigo a suspeitar que ninguém tem opinião, dizem que têm, mas é só para armar ao pingarelho; afinal, as opiniões é que andam por aí e agarram as pessoas pelos cabelos. Dos carecas é que não sei.

De qualquer forma, há uma dúvida que me atormenta: o que é – para os que dizem que têm – ter opinião?

Será agarrar-se a gente a dizeres que nos dão jeito sem desarrumar o jeito do nosso condicionamento e assim nos tomarem por vivos e sãos?

Isto é só a minha desopinação!