A razão de chamarmos aos
dias que correm – e faz todo o sentido chamar – tempos de pós verdade, é porque
a verdade do que se afirme ou o compromisso que se tome deixaram de ter
qualquer importância. Esta situação criou raízes profundas porque ao mentiroso
não se imputa qualquer ónus, antes pelo contrário: o povo acarinha os
mentirosos que invoca e segue, não ignorando de modo algum que mentem. Aliás,
exige que mintam, precisa que mintam para alimentar as ilusões, que são a sua
metadona, de que não se quer o desmame. Este é um tempo em que chamar mentiroso
a alguém não implica que o seja, tanto faz, a novilíngua veio para ficar e as
palavras deixaram de ter significado próprio, são uma espécie de cuspo que se
dá na linha do discurso para que entre bem no buraco da liberdade de expressão
que vilmente vamos inventando para protelar a nossa requerida inumação.
terça-feira, 28 de junho de 2022
HOJE É O TEMPO EM QUE TÃO MENTIROSO É O QUE MENTE COMO AQUELE QUE FALA VERDADE
NESTE LUGAR INSALUBRE
As nossas sociedades doentes não são lugares agradáveis para uma vida saudável, despreocupada e feliz. É por isso que todos somos mais ou menos doentes, na dependência directa da nossa resistência.
Fundámos uma cultura baseada no ter e é do ter que pretendemos retirar toda a felicidade e bem-estar, alienando aquilo que em nós é mais humano. Tornámos a vida uma competição de todos contra todos e substituímos as crenças antigas por crenças novas mais ilusórias ainda do que aquelas. Não nos apercebemos sequer que a própria ilusão é uma doença, uma doença da imaginação.
segunda-feira, 27 de junho de 2022
AFORISMOS E DESAFORISMOS
V.N. 28 Junho de 2021
Eu sou viciado em aforismos, todavia mais nos meus do que nos de terceiros. Quando cito aforismos de outros é por despeito de não ter sido eu a escrevê-los.Mas neste mundo das redes anti-sociais cita-se demasiado, por vezes deturpado, outras vezes atribuindo a autores de nomeada coisas que eles não escreveram nem escreveriam. Por exemplo, já tropecei dezenas de vezes no erro comum de atribuir a Voltaire aquela frase desconchavada de «eu não concordo com o que dizes, mas defenderei o teu direito a dizeres isso» – tem várias nuanças a frase, mas a ideia é esta – Voltaire não disse isto nem parecido.Mas há pior: atribuir a pessoa respeitada uma série de baboseiras tipo new age que a pessoa, pensando precisamente o oposto, nunca diria, .Andou por aqui, pela milionésima vez, aquela frase atribuída a Heraclito de não podermos banhar-nos duas vezes nas águas do mesmo rio. A frase foi mal citada, provindo com certeza de uma deficiente tradução; não referia as águas do mesmo rio, mas o rio. E Heraclito podia ter dito a frase dessa forma, porque ele não queria referir-se ao rio, mas ao tempo. Era uma metáfora para transmitir a ideia de como o tempo flui. Em outra frase diz assim: «Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio». A ideia é que o tempo flui, não se detém. Usando tropo similar, diz também: «Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos», querendo significa o perene devir. Similarmente, diz também: «Para os que entrarem nos mesmos rios, outras e outras são as águas que por eles correm».Mas quando nos debruçamos sobre o que disseram ou não disseram filósofos que não estão cá para confirmar ou desmentir as frases popularizadas, é bom que tenhamos em conta que não há grandes pensadores sem dizeres paradoxais. Agostinho da Silva assumiu sem constrangimentos quanto o paradoxo pode ser precioso num «livrinho» – não sei se foi publicado – que primeiro chamou de «Reflexões, Pensamentos e Paradoxos», que depois rectificou para «Pensamentos, Aforismos e Paradoxos».Ele escreveu no aforismo 14: «Ser ou Nada são os dois nomes que dou ao mesmo alguma coisa ou nenhuma, que não tem nome; à qual pôr um nome é sacrilégio».Eu respondi-lhe assim: «No acto mágico de matar – e possuir pelo nome é matar – é em nós que a magia resulta, e também naqueles que se nos submetem. Pelo nome todas as mortes são possíveis, e assim mesmo a de Deus. Morte actual e não real.»Façam leituras. De tudo o que leiam nada aceitem, mas que nada vos seja indiferente, ou perderam o tempo com a leitura. O papel aceita tudo. Quem aceita tudo o que está escrito faz de papel, não de leitor.Façam o favor de não ser infelizes, ou sejam felizes, se forem suficientemente egoístas e inconscientes.
sexta-feira, 10 de junho de 2022
FAKES, TONTICES E FALTA DE ATENÇÃO.
É minha convicção que os navegadores das chamadas redes
sociais, na sua grande maioria, pecam por desatenção, futilidade e vontade de
acreditar no que mais jeito dá. No meio de tudo isto, fica ausente o espírito
crítico e prevalece o slogan, as ideias feitas e a resposta formatada. Por
exemplo: é frequente aparecer no Facebook um post em que, a acompanhar uma foto
duma artista de filmes porno (Mia Khalifa) se coloca uma legenda com mais ou
menos estes dizeres: «Fulana, aluna do Liceu de Freixo de Espada à Cinta,
ganhou as Olimpíadas Mundiais de Matemática e os media nada disseram. Se fosse
um futebolista não faltariam os elogios, mas como é uma jovem estudante, ainda
por cima da província...».
Isto aparece há vários anos, mais do que uma vez por ano, e não adianta denunciar, é uma febre incurável e recorrente. As partilhas somam-se por muitos milhares. Ninguém duvida daquela idiotice nem repara na mais do que suspeita figura retrata, insuficientemente jovem para andar no liceu, de formas sensuais exuberantes. Ninguém se dá ao trabalho de ir constatar que não existem Olimpíadas de Matemática e que o instituto invariavelmente apontado como organizador não existe. Mas dos comentários, a tónica geral é a da conveniência de atacar o futebol para armar ao pingarelho, reflexo condicionado da formatação recebida. Que hipócritas!
Ora bem: os benfiquistas são 6 milhões (dizem eles), os
portistas 3 milhões (dizem eles), os sportinguistas 2 milhões (dizem eles) e
esta massa, a totalidade do povo português, para que os referidos clubes não
joguem apenas entre eles, apoia uma série de clubes figurantes. Conclusão: os
comentários a condenar o futebol são tão falsos quanto o post que vimos
referindo. Não sei se repararam, mas estes dichotes acerca dos milhões de
adeptos procuram ser irónicos. Eu sei, eu sei que os assanhados do comentário
levam tuto à letra e só lêem pela rama, mas paciência.
Por estes dias, depois de já termos visto esta coisa dezenas
de vezes, anda a circular nas redes aquela foto esmaecida, para armar ao
antigo, colocada agora por um tal Primoz Gosak, com a legenda: «Por favor,
ajudem! Encontrei esta foto no chão em frente ao Lidl. Na página de trás diz:
"Mãe e pai, 1955". Adoraria devolvê-lo ao seu dono, parece uma foto
preciosa. Por favor compartilhem para que possamos encontrar o dono! Obrigado.»
Interessante é que o original deste tal Primoz Gosak – e vá
lá saber-se por que corre em português – está escrito em sérvio e não diz
exactamente o que anda a circular. Em sérvio diz: «Prosim pomagajte! Tole
sliko sem našel na tleh pred Lidlom. Na zadnji strani piše, " Mami in oči,
1955". Z veseljem bi jo vrnil lastniku, izgleda kot stara in dragocena
fotografija. Prosim delite da najdemo lastnika! Hvala.» O Google diz que
este arrazoado se traduz assim: «Por favor ajude! A força aérea não está lá.
Na parte de trás está escrito "Mamãe e papai, 1955". Para onde quer
que você olhe, há uma bela sessão de fotos de arrastar e soltar. Vamos dar um
passeio! Obrigado.».
Já viram o despautério?
Mas adiante. Na tal foto esmaecida estão os actores Crispin
Glover e Lea Thomson, que na trilogia de ficção científica dos anos 80,
Regresso ao Futuro, representavam os papéis de pai e mãe do herói Marty MacFly.
Já falámos bastas vezes de uma outra doença facebookista, que
é, digamos, o citacionismo – esta inventei agora e não deve confundir-se com
situacionismo, que este é o lugar onde o citacionismo acontece, a mania das
citações, que até poderiam ser interessantes, se fossem verdadeiras. Einstein, Tesla,
Pessoa – eu sei lá! – já disseram tudo e o seu contrário, mesmo sem terem dito.