sexta-feira, 30 de março de 2018

DESUMANIDADES

Quer a engenharia genética, quer o nuclear de guerra erguem bandeiras em nome do bem. A primeira quer aperfeiçoar o homem, superando a natureza; o segundo quer exterminar os feios, porcos e maus, segundo os critérios restritos da violência total e poder do mando, da escolha e da segregação.

O que é comum a estas duas negações da inteligência é a grande perversão do lema não declarado: purificar é preciso, viver não é preciso.

Espreitando a História, pode dizer-se: Homero não serve, por ser cego, Jesus também não, por ser vesgo, Dostoievski muito menos, por epilepsia.

Pensar a ciência colocando uma esperança salvífica no laboratório da genética, na lógica do milagre que esperámos malogradamente da religião, talvez não seja um caminho de perfeição para o homem, porque daí talvez não seja homem aquilo que resulte; chamar de impuro o que é diferente, o que nos incomoda, o que tememos, o que odiamos e em vez de integrar e entender querer segregar, querer exterminar, não torna a humanidade melhor, empobrece-a, não nos dá segurança, porque a insegurança nasce do medo e o medo justifica-se por si mesmo, faz parte da nossa condição, é um limite à nossa própria inteligência.

Se o medo é muito, a inteligência não é nenhuma.

quinta-feira, 22 de março de 2018

DO LADO DE QUEM SAI, OU DO LADO DE QUEM ENTRA?

Neste treinamento neurónico, constituinte da almofada de penas de aconchegar consciências, neste conjurar de preces para que os militares, em vez de militarices se dediquem à política, substituindo corruptos à civil por corruptos fardados, mas armados até aos dentes, os brasileiros discutem emotivamente, dada a falta de espaço para a razão, coisas de esquerda e de direita, sem que digam se vêem a coisa do lado de quem sai ou do lado de quem entra.

Não se iludam, porque a factura da ilusão é sempre a desilusão. E creiam: o Pai Natal não existe, e os gambozinos também não.

A desonestidade não tem cor.

Quem faz o ladrão é a ocasião.

Se as instituições não têm os mecanismos preventivos adequados e suficientes, o roubo torna-se inevitável. Nos países onde cortam mãos, os ladrões vêem-se obrigados a roubar com os pés. O grande problema, nos países ditos democráticos, é que o povo chama ladrão aos ladrões de quem não gosta para ir a correr votar nos ladrões que ama.

O pecado dos vociferantes é que não vociferam contra o roubo, não se escandalizam com o rouba, vociferam contra quem rouba e contra quem imaginam que rouba, mesmo que o não faça.

Há aqui uma grande componente de inveja, não há?

Nos países sufragistas, a corrupção nas altas esferas do estado não pode acabar enquanto os eleitores votarem por identificação.

Leiam os textos políticos de Fernando Pessoa. Está lá tudo.

domingo, 11 de março de 2018

CURSO, DECURSO, RECURSO, PERCURSO E DE TUDO ISTO O DISCURSO.

Engraçado, em castelhano, a palavra recorrer quer dizer coisa bem diferente do que parece, significa percorrer.

Na juventude, escrevi uma espécie de poema que não queria significar coisa nenhuma e dizia mais ou menos o seguinte: «Na osmose pose do meu corpo barro, quando ex-barro me esbarro e em desespero espero…» etc. e tal, que já não me lembro bem.

Isto para dizer que para além do cuidado com coisas de importação, seja de palavras vindas da estranja, seja de outros contextos, haverá que ter um cuidado redobrado com o que à literatura, e em especial ao discurso poético se exige: a assunção de uma metalinguagem, que cabe apenas à literatura e se tem de negar, como é óbvio, à prosa de serviço, aos manuais.

O jovem Luís Coelho remeteu o aforismo abaixo, que partilhei na minha rede do FB:

«A melhor maneira de perder o curso da Vida: fazer um curso académico».

Ora, isto mereceu crítica viva, em especial da nossa querida amiga RS, que, salvo melhor opinião tresleu a frase.

Vamos lá ver algumas nuanças e dimensões da mesma. Comecemos por notar a letra maiúscula de Vida, que nos leva a uma primeira leitura: a vida académica não é verdadeiramente vida, mas as mais das vezes o seu contrário. Junte-se a isto a divisa dos argonautas, tão cara a Fernando Pessoa: «navegar é preciso, viver não é preciso». Se virmos navegar no sentido de cursar, como o cursar académico, o aforismo do Luís justifica-se em linguagem linearmente lógica e o que ele diz torna-se uma verdade insofismável: o curso académico diz à vida que ela não é precisa. É claro que nós preferíamos dizer que viver é preciso, desfolhar sebentas não é preciso.

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Cabe dizer-se que eu aprendi em pormenor a aplicação do direito entre os romanos, sendo uma pena não haver romanos a quem eu possa aplicar esse meu academismo.

O irmão do meu saudoso amigo António Telmo, o professor Orlando Vitorino, um dos últimos representantes da "Filosofia Portuguesa", chamado um dia a pronunciar-se sobre o ensino, disse mais ou menos isto, que eu não estava lá para ouvir: «Ó Sr. Ministro, se quer fazer alguma coisa de útil pelo ensino, feche todas as escolas, a começar pelas universidades».

Estes seus dizeres não eram novidade, no prefácio que fez a Ensaio Sobre a Liberdade, de Stuart Mill, publicado pela Arcádia, em 1973, diz sobre a universidade:

«… deveria ser extinta porque era «herdeira de todas as limitações ao desenvolvimento intelectual e de todas as proibições de informação cultural e científica ancestralmente atribuídas a organizações que, no progresso de actualização, as vieram abjurando, como as do ensino e da censura eclesiásticos».

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Quando o Professor Agostinho da Silva admoestava quem lhe falava em pedagogia e em pedagogos, logo tratava de dizer que pedagogo era o escravo que, na Grécia Antiga, impedia o menino de ter tempo livre, ou seja, tornava-o mais parecido consigo próprio.

E que tal lembrar aquela canção dos Pink Floyd, Like a brick in the Wall?

Perde-se o curso da vida quando se vai de percurso pela academia, discorrendo sobre o que foi e já não é. Quem vai pela academia tem todo o direito de ir e gritar bem alto: desfolhar é preciso, viver não é preciso. Terá até razão, se disser o curso da minha vida é o curso da minha academia; a minha vida é a corrente académica.

Penso que o grande qui pro quo da leitura da nossa querida amiga RS é estar a confundir a palavra curso, que deveria ser entendida como fluir, que é o que faz a vida, fazem os rios e fazem os ventos, com o que mais correntemente se usa, o que inevitavelmente conduz a entender-se conquista de um grau académico, coisa que até pode bem ser um atraso de vida.

PALAVRAS NECESSÁRIAS/PALAVRAS DESNECESSÁRIAS

Há muitos anos, campeava na rádio um erudito da língua portuguesa que a entendia estática, imutável, esclerosada. Dava pelo nome de Vasco Botelho do Amaral, precedido de professor. Nada a opor ao seu estatuto de professor nem a sua qualidade de erudito da nossa língua. Sem dúvida que lhe assentava bem. Aliás, foi fundador da Sociedade de Língua Portuguesa e o seu Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas da Língua Portuguesa é ainda uma preciosidade. O problema não está, portanto, no muito e bem que sabia, mas na forma apertada com que esgrimia um certo preciosismo. Recordo-me, por exemplo, de como propunha que substituíssemos a palavra bibelot por pechisbeque, coisa a que os ingratos falantes da nossa língua não ligaram nenhuma, e fizeram muito bem.

Lembro isto porque, se calhar, fazia falta estar vivo e continuar com as suas charlas. Ora vejam, há dias, o Primeiro Ministro, que por sinal não disfarça que o seu forte não é a oralidade, nem o uso preciso e conveniente do nosso vocabulário cuidado, aconselhava as pessoas das áreas sinistradas dos últimos fogos a REALIZAREM não sei o quê. Ainda pensei que se referisse a festas, quermesses e coisas assim, mas não. Usando indevidamente um modismo tosco de armar aos cágados, porque o que está a dar é importar americanismos, ele queria dizer não sua constatar, ter consciência e coisa assim. Esta importação abusiva e desnecessária do inglês, quando temos mais de uma dezena de palavras para significar o que queremos significar, perdia valor com uma simples consulta a um dicionário de português-inglês, onde na entrada constatar obtínhamos precisamente as respostas «to realize», «to notice» e «to see».

Os portuguese com um pouco de instrução têm um desprezo colossal pela nossa língua. Basta ouvir os nossos locutores, basta ver como se permite o crime de alta-traição que é o Aborto Ortográfico, onde não se distingue óptico (que diz respeito aos olhos) de ótico (que diz respeito aos ouvidos), pôr de por, quem espeta facas de quem assiste a espectáculo, etc., etc.

Quem poderia pôr cobro ao dislate seriam os deputados. Mas como? basta ver o que dizem e escrevem para se perceber da sua iliteracia.

Mas os locutores da rádio e da televisão têm outras modas. Por exemplo, usam e abusam dos plebeísmos. É o «fechou-se em copas» a torto e a direito, é empregarem «culpa» e «graças» em completo desalinho, é o «de encher o olho» e até o célebre «debaixo de olho», quando lá no meu bairro se dizia que debaixo de olho está o penico.

A ligeireza com que se trata a língua portuguesa é responsável por muitas incompreensões. Isto dá-se, inclusive, por pessoas letradas, que escrevem nos jornais e escrevem romances. Por exemplo, uma participante num programa semanal da nossa televisão emprega com grande frequência a expressão massa crítica, mas dá-lhe o sentido oposto ao correcto. A expressão vem da Física, foi adoptada pela sociologia e acabou por invadir o linguarejar comum. Acontece é que não significa o que a senhora pensa – um monte de gente a criticar – significa o oposto, um monte de gente a acreditar e a realizar, não no sentido de constatar, mas de fazer.

Por estes dias, uma amiga que pensa e escreve bem, embirrou com um certo aforismo, onde entendeu a palavra curso no sentido restrito de quem anda na escola, e não como o principal, com os principais significados que se registam no dicionário. Ide ver.

A palavra assassino tem similitudes de aproveitamento com a palavra curso, trajectória da água. Antes de se usar a palavra assassino, a palavra devida e em voga era homicida. Parece que assassino só nos chega com Marco Polo, que identificou os guerreiros do Velho da Montanha (Hassan ibn al-Sabbah), em Alamut como fumadores de haxixe, associados depois aos homicídios políticos e tomando a palavra síria Assa (que está no nome de Assad) como raiz de «haxe», quando parece querer dizer fundamentos da fé e/ou guardião. O nome Ḥashāshīn, conforme atribuído por Marco Polo á Ordem dirigida pelo Velho da Montanha, também poderá significar «os seguidores de Hassan». Curiosidades, apenas.

Non Sense

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SÓ A BRINCAR SE PODE SER SÉRIO. PATRÕES, BANDIDOS, POLÍCIAS E PADRES NÃO BRINCAM.

Há um ror de tempo, caíram-me nas mãos dois encantos, que devorei várias vezes de fio a pavio: Os Contos do Gin Tónico e Os Novos Contos do Gin Tónico, do Mário-Henrique Leiria.

Dirão alguns que conheçam, sobretudo se conhecerem mal: brincadeira, coisas de rir, coisas pouco sérias, ausência de estímulo à inteligência e outras coisas comuns aos que sofrem de burocracia cerebral. Eu estou nos antípodas, felizmente, embora possa ser suspeito por muito ter alinhado com o non sense, o surrealismo e o dadaísmo.

Sabem a origem de dadaísmo? Vem de dádá, que é a primeira palavra que os bebés pronunciam, para desespera as mães, que dizem para os rebentos: não é assim, diz papá, diz mamã…

Provavelmente, os que se incomodam e deploram estas correntes sentem-se mais confortáveis com a pseudoliteratura do escrevedor a metro, aquele que faz um sorriso matreiro quando lhe chamam o Dan Brown português, ou aquela senhora descritora de alcova, que não recordo o nome e não acredita em coincidências.

São feitios.

Com tanta coisa de valer a pena, para as quais a vida nos não vai dar o tempo suficiente – não contem sequer com prolongamento – algum critério selectivo seria bem-vindo.

Mas como seleccionar?

Não sei.