segunda-feira, 29 de maio de 2017

SEQUELAS DO TESSIQUEZAPE

ROMPER BARREIRAS, como é óbvio e a própria palavra romper no-lo diz, implica violência, o que varia em cada acto é o grau e a justificação (ou a desculpa).

A violência está profundamente enraizada na natureza, na humanidade, em cada um de nós. Nascer é uma violência e morrer é-o também. Na pragmática, no acaso e na transcendência há uma constante de violência. Concebemos o parto sem dor para as nossas crias, mas não o soubemos inventar para a reprodução dos dias.

Olhando o passado distante, poucos se apercebem do facto de ter sido há milhares de anos que o homem rompeu a barreira do som pela primeira vez. Verdade, isso mesmo, há milhares de anos, sem qualquer introdução aqui de realismo fantástico. Há milhares de anos, quando era ainda impensável voar, coisa que apenas atribuíamos aos insectos, às aves e aos anjos, embora o morcego, que não pertencia nem pertence a nenhuma destas categorias, também voasse. E bem. E continua a voar.

Há milhares de anos, repetimos, quando não havia imagem sonhada sequer de aviãozinho de pau-e-corda, quanto mais de supersonorização.

Foi há milhares de anos quando, digamos que por desfastio ou necessidade de afirmação, inventámos o chicote. Dava um prazer dos diachos ouvir aquele tessiquezape, mas não foi pelo prazer dessa música concreta que o inventámos. Não. O que nos moveu — o que sempre nos move — foi pensar no que lucraríamos com o castigo do lombo das bestas e dos escravos submetidos aos interesses da nossa tripa e do nosso ócio. Ontem como hoje, é a tripa que mais ordena, que tudo condiciona.

À luz do que sabemos hoje, torna-se perfeitamente evidente que rompíamos então a barreira do som apenas do lado de fora, e é claro que, a partir daí, aperfeiçoámos imenso a técnica do tessiquezape. E não confundamos as coisas: nos seus voos entre Paris e Nova Iorque, o Concorde, entretanto falecido e descontinuado, mais não foi do que um fait-divers, porque afinal, bem lá no fundo, o que nos movia era o insofismável desejo do abate seguro e rápido do inimigo em voo, ou o seu churrasco, quando rastejante, não o devaneio transcrito nos jornais de chegar ao destino antes da hora da partida.

Pois é: contrariamente ao que fingem pensar certas almas piedosas, do parto ao genocídio há o exercício constante da violência e toda a acção humana se caracteriza pela ruptura de barreiras reais ou imaginárias: o romper das águas.

Será uma maldição?

Não e sim! É a maldição da besta, porque ao homem, assim o presumimos, caberia tomar consciência dos medos escondidos nos seus porões, a desocultação dos seus atavismos e a sublimação dos seus actos pela iluminação do gesto. Palpita-nos, porém, que isto não seja muito bom para o share e seja demasiado prejudicial para o mercado...

E é de temer — sem dúvida que sim — que se confunda iluminação do gesto com o incêndio das cidades, à bomba ou por archote, e a iluminação do homem pela sua submissão a qualquer doutrina salvífica que pseudo-iluminados de ocasião decretem.

Faz muito tempo, um judeu de origem portuguesa, nascido não se sabe muito bem onde, inventou uma consigna que se tornou emblemática para aquela que viria a tornar-se na mais ecuménica das revoluções triunfantes, mas todavia ainda não completamente realizada, dada a grande dificuldade da quase quadratura do círculo que é manter inseparáveis Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

É comum etiquetar-se de francesa esta revolução, mas não devíamos chamar-lhe assim. O ter-se tornado tão contagiosa deveu muito à ganância e à intrepidez napoleónicas, mas Napoleão não era originariamente francês, era corso. Burguesa, sim, é que ela foi e não deixou de ter presente o tessiquezape do nosso atavismo, como não poderia deixar de ser. Se beneficiamos hoje — e muito — dos seus aspectos mais positivos, tal não deve impedir de nos lembrarmos das grandes iniquidades perpetradas e de ter presente que toda a rebelião, como disse alguém, é um invento que serve para substituir uma forma de tirania por outra.

Por aquilo que já dissemos e pelo que digamos mais adiante, poderá inferir-se que somos pessimistas, mas colocamos aqui este parêntesis para afiançar que não. Aliás, como sabem, pessimistas e optimistas cabem na tal parábola do copo meio cheio e do copo meio vazio. Também se poderá pensar que achamos que o mundo esteja hoje pior do que no passado. Não está. Além disso, o homem está bem melhor e, sob o ponto de vista material, nunca esteve tão confortavelmente instalado quanto hoje. O que acontece é que chegámos a um fim de ciclo, as nossas instituições caminham para a putrefacção e ainda não arregaçámos as mangas para nos reorganizarmos para uma nova era e um novo mundo. Só isto, que não é pouco.

Assim, que não se assustem os leitores, porque é evidente que, apesar da pesada atracção da nossa animalidade, progredimos alguma coisa no sentido da rejeição dos infernos que fomos criando ao longo da nossa caminhada. Todavia, descuidámos muitos valores que pareciam conquistas seguras. Por exemplo, falar em honra, respeito e verdade provoca comummente o riso e o desdém; são conceitos incomportáveis para o discurso em uso, o discurso que o mercado determina e a apatia consente.

Quanto ao que progredimos, poderíamos dizer que do atavismo reproduzido na tradição oral, da pragmática da tribo, dos tabus, da união pelo sangue e pelo chefe, das entoações mágicas e guerreiras, da agressividade de sobrevivência e domínio progredimos para a História, a Filosofia, a Religião, a Política, a Poesia, o Canto, a Dança, o Desporto, mas do atavismo guerreiro forjado na irmandade e na entreajuda, da hospitalidade, da caridade, da religiosidade, da força física, da inteligência emocional, regredimos ou subvertemos perigosamente para a destruição massiva, o individualismo, a competitividade, a bastardia, o condomínio fechado; desdenhámos o sem-abrigo e enaltecemos o mercenário, vergámos a cerviz ante o poder do dinheiro, mergulhámos no estranho fanatismo da indiferença, detestámos as manhãs e inundámos as noites de néon...

E vejam como, para além de subsistir por toda a parte a velha escravatura stricto sensu, surgiram novas formas de escravatura e de dependência com características feudo-vassálicas: o trabalho temporário, o desemprego técnico, o migrante em fuga, os recursos humanos descartáveis...

Recursos humanos! Como se humano fosse coisa.

Em nome de um sistema que a si próprio se nega, estamos a tornar o mundo um lugar de ostracismo habitado por supranumerários; uma selva pós-moderna com selvagens reciclados, tudo isto embrulhado em apatia e justificado pela cibernética, porque só a cibernética pode explicar que é, aquilo que não é. A montante e a jusante da nossa apatia, os incendiários de sempre põem todo o zelo em que não falte nunca a devida ração de medo. Que sejamos avestruzes é o seu descanso, que não nos interroguemos sobre os nossos direitos de cidadania, a nossa liberdade, a nossa realização e a nossa felicidade é a sua garantia de conservação do poder, de manutenção dos privilégios.

Se a decadência de todas as instituições se acentua a cada dia que passa neste tempo que apodrece, que legitimidade sobra aos governos, sufragados ou não?

segunda-feira, 22 de maio de 2017

MALLEUS MALEFICARUM

 

Quando me confronto com a muita raiva à solta nas redes sociais, quero convencer-me que possa valer como uma enorme catarse. Seria bom que assim fosse. É o meu aldo optimista de olhar para as coisas. Mas, convenhamos, passa-me depressa, porque de imediato me vem à lembrança o muro das lamentações, em Jerusalém, que me obriga a esta interrogação: Não será o Facebook, por exemplo, um gigantesco muro cibernético de lamentações?

Estas cogitações levam-me a murmurar baixinho, para que ninguém oiça e se ponha a suspeitar que também eu me lamento, que é demasiado comum o vício de nos especarmos frente aos muros, ora chorando, ora espumando de raiva, como lobos enjaulados. Quando é que aprendemos a dar a volta aos muros, já que nos sentimos impotentes para acabar com eles?

Querem os judeus mais crentes, daqueles que entendem que só é verdade o que os seus textos religiosos acolhem, que aquele muro onde vão carpir mágoas seja o que resta do lendário Templo de Salomão, pouco lhes importando que a Arqueologia diga que não é verdade, que se trata do que sobrou de um antigo templo romano dedicado a Júpiter. Pode bem ser que esta devoção equivocada tenha sido (e ainda possa ser) espiritualmente terapêutica para estes crentes, coisa que eu não creio, embora caiba lembrar aquele dito oriental de que pouco importa se um gato é branco, se é preto, é preciso é que apanhe ratos.

Querem os cibernautas mais devotos da NET, mesmo que descrentes da vida, que os seus protestos raivosos, as suas violentíssimas (mas passageiras) indignações e outras provas de vida virtual demonstrem Urbi et Orbi o quanto estão atentos e não perdoam comportamentos fora do manual.

Todos os muros – ou não seriam – servem para separar e onde há separação há ódio. Ódio do judeu mais fundamentalista à gente gentio (os goy); ódio do cibernauta ao mundo e à vida. O judeu atribui humanidade a todos os seus; o cibernauta só a si próprio, porque o mal do mundo é os outros não serem como só ele é…

Ele, com o seu computador e a sua raiva, é uma versão pós-verdade do martelo das bruxas. É por isso que martela nas teclas e na pachorra de que está do outro lado do muro.

quinta-feira, 11 de maio de 2017

A LIBERDADE EM GLOBALIZAÇÃO

V. Novas, 11 de Maio de 2017

Substituída que foi pela conveniência, a moral havida encontra-se moribunda, nesta nossa sociedade que, para o bem e para o mal, levou o primado do indivíduo ao trono da liberdade. Provavelmente, a conveniência sempre foi a regra de qualquer moral, em qualquer contexto e em qualquer tempo, nós é que temos o mau hábito de fazer projecções idealistas, confundido o que é com o que pensamos ser, ou que deveria ser.

Mas deixemos isso, falemos dos dias de hoje, onde o indivíduo pode tudo sem quaisquer pruridos de moral, nem polícia à perna, desde que não atente contra as conveniências implantadas, todas elas de carácter mercantil, que é a nova sacralidade da religião global chamada de mercado.

O indivíduo pode tudo, e o estado moderno, que substituiu a velha sacralidade por esta mais actual, que o dinheiro benze, pouco se preocupa com o que o cidadão pensa ou a moral que usa, preocupa-se sim é com os grãos de areia que possam afectar a engrenagem cada vez mais fria e cada vez mais distante.

O pensamento único instalado tornou-se o contrário do que dantes se entendia por pensamento, é um rolo compressor invisível que mata qualquer veleidade de pensar fora dos carris do massivamente aceite, pelo que o primado do indivíduo nada tem a ver com ser único e irrepetível, mas com o número fiscal (ou outro) de que cada um seja réu. Finalmente temos o indivíduo-massa, o indivíduo clonado, auto-satisfeito por julgar que faz o que quer, que é livre. Este indivíduo perdeu a capacidade de querer, apenas deseja o que o pensamento único lhe agrafou aos instintos. O homem-massa dá lucro, é útil, vota e paga impostos. Pode, e dantes não podia, injuriar qualquer capataz do sistema, porque isso não prejudica o mercado, antes pelo contrário, e serve de válvula de compressão, para evitar problemas na caldeira.

É evidente que o que eu digo aqui só merece o desprezo dos crentes e a indiferença dos que pensam como é suposto que devam pensar e controlam por procuração todos os modos de pensar. A maioria chamará a este desmundo progresso, louvará as instituições, reafirmará que isto é assim porque não pode ser de nenhuma outra maneira, é a maturidade geral das sociedades modernas, rumo à globalização e à diluição do estado. Acreditar-se-á até num pronúncio de novas e promissoras formas de relacionamento. Engano.

O estado dilui-se no que concerne aos interesses dos mais frágeis e fortifica-se no enaltecimento e rédea larga para os crupiês e premiados do jogo. Paradoxalmente, o estado é hoje mais poderoso e omnipresente do que nunca e leva os seus instrumentos de propaganda e reprodução do sistema ao requinte do reflexo condicionado, infalível e consentido, numa lavagem aos cérebros que torna os indivíduos completamente descaracterizados, previsíveis, apáticos e descartáveis. Ou seja, o primado do indivíduo tornou-se o primado do indivíduo-padrão, usado na clonagem do homem-massa.

Abdul Cadre

sexta-feira, 5 de maio de 2017

O OITO E O OITENTA

V. Novas, 5 de Maio de 2017

Dizia Sócrates que o verdadeiro conhecimento vem de dentro. Penso que se referia à sabedoria, não ao conhecimento meramente utilitário, não ao acumular de saberes, porque estes, julgo eu, vêm de fora. E não ponho sequer de fora a ideia platónica de que aprender é recordar, porque entendo tais recordações, não como de coisas, mas do impacto das coisas.

Sabedoria e conhecimento podem comparar-se com fé e crença; fé e sabedoria vindo de dentro e conhecimento e crença vendo de fora. Aceitando-se isto, poderíamos acrescentar que o que vem de dentro é irracional – a-racional, se se quiser –, já que escapa ao domínio da razão, enquanto que o que vem de fora, por mais estúpido que seja, é racional, porque se o não fosse não era apreensível. Do que se aprende e do que se acredita é pelo jeito que dá que se acumula; elimina-se da crença e da aprendizagem aquilo que a sabedoria nos faz entender como inutilidades, como peso morto.

O saber utilitário faz-se de experiência – só sabemos verdadeiramente o que experimentamos –, e, ao tornar-se de aplicação geral, submete-se ao colectivo, passa ao domínio do colectivo. Eis assim que a transmissão destes saberes se faça melhor em grupo, onde a imitação tem um papel relevante. De tais saberes, cuida-se da qualidade em grupos restritos; da quantidade ou massificação em grupos alargados.

Entre o pequeno grupo e a multidão joga-se dos saberes a qualidade preservada ou a sua degenerescência.

Se é em grupo que melhor se aprende, deve perguntar-se da importância do seu tamanho. Parece ser indiscutível que um grupo restrito é mais funcional do que um grupo alargado; estes geram ruido e dispersão, aqueles são mais fáceis de motivar. Mas é difícil aquilatarmos do número mais conveniente de pessoas para integrar um grupo suficientemente motivado. Da minha experiência, diria que não menos do que cinco e não mãos do que 15 indivíduos. Grupos demasiado pequenos são permeáveis aos conflitos de personalidade, grupos demasiado amplos são permeáveis à dispersão.