quarta-feira, 24 de agosto de 2016

O USO DA RAZÃO CAUSA DORES DE CABEÇA

 

Há muita gente que, por muito que argumentemos, se recusa ao uso da razão e se deixa aprisionar pelas emoções, que confunde com sentimentos e amor à justiça. Sem dúvida que os sentimentos precisam da emoção – nós não somos robots computadorizados – mas só se podem conceber justos (ou verdadeiros), belos e bons se a razão os educa e a consciência os acolhe. Quando digo consciência, quero chamar a atenção para o cuidado que devemos ter para não sermos iludidos pelos ardis de que o inconsciente se serve para doirar as nossas pílulas.

Se o uso da razão nos causa dores de cabeça, bebamos muita água pura, que passa. Pode, em muitos casos, causar dores e enguiços a terceiros e aí pouco mais podemos fazer do que usar parcimónia, bom-senso e respeito pelo outro. Mas o que importa dizer-se aqui é que a razão é imprescindível para que nos não equivoquemos – ou nos equivoquemos o menos possível – nos objectivos que os desejos pretendem atingir. Aquela anedotas dos escuteiros que, motivados pelo desejo de praticar uma boa acção, atravessam a velhinha que não queria atravessar, é bem ilustrativa de que o resultado de uma acção se sobrepõe à intenção.

Indo ao mais concreto da intenção deste escrito, quero chamar a atenção de quem me lê, de que nos dias que correm surgiu uma corrente de pessoas – não ponho em dúvida que muitas delas sejam bem intencionadas – que argumentando com valores da nossa cultura e respeito para com s outros, se propõem substituir a vontade desses outros pela sua própria vontade, ainda por cima querendo autoconvencer-se e convencer-nos que isso é respeitá-los. Não é! Trata-se precisamente do inverso. Essas pessoas não querem entender que diminuir os outros, torná-los menores mentais não é respeitá-los. Respeitá-los é olhá-los como sujeitos de livre-arbítrio e com a mesma humanidade que nós, sem o que voltamos à vela paródia do Raúl Solnado: «meu filho, quer queiras quer não queiras tens de ser bombeiro voluntário».

Vem tudo isto a propósito de, na semana passada, três mulheres usando burkini na praia – em Cannes – terem sido multadas. Se não pagarem, vão para a cadeia.

Que forma extraordinária de defender aquelas que foram consideradas, pelos totalitaristas do pensamento único, como menores mentais.

Abdul Cadre

UMA AJUDA AO RACIOCÍNIO

 

Suponhamos que um agente da autoridade, de preferência feminino, chega junto de uma mulher que usa burkini, na praia, está bem de ver, e lhe diz, sem enjoo nem olhar de coruja, «bom dia, minha senhora, desculpe incomodá-la, é de sua livre vontade usar essa vestimenta?».

É claro que isto somos nós a delirar, porque é muito difícil alguém imaginar um agente da ordem (?) a tratar com decência e como cidadão quem, progressivamente, vai sendo objecto de redução à categoria de sub-humano pelos cínicos de serviço nos media e na política. Mas adiante. Suponhamos, continuando este delírio, que a cidadã diz que sim. O caso está arrumado e a agente partirá à procura de carteiristas e vendedores de bolas de Berlim estragadas. Se a cidadã disser «não, senhora mulher-polícia, eu sou uma desgraçada, eu até queria fazer top less, mas o meu marido não deixa e a minha família obriga-me a andar assim vestida», é evidente que terão de ser tomadas medidas, não contra a cidadã e o seu burkini, como em Cannes, mas contra o abuso do poder familiar de que a cidadã é alvo. Se alguém tiver de ser multado ou preso, não pode ser ela.

Só mentes doentes e atitudes doentias podem levar aos procedimentos que se conhecem e os inquisidores aplaudem.

Se me der a travadinha e me vestir de galochas, capotão impermeável, um capacete de escafandrista na cabeça e for a banhos em Cannes, posso ser motivo de risota, mas não sou multado nem preso; os inquisidores locais não me acusarão de prejudicar o turismo, antes pelo contrário, farão de mim atracção turística. Posso até ser entrevistado para a televisão. «Por que é que o senhor se veste assim para andar na praia», pergunta o entrevistador entusiasmado pelo exclusivo conseguido. Aí, faço o meu sorriso de humano autêntico e de raça superior e digo: «porque não me apetece vestir assado…»

Abdul Cadre

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

CARTILHA LIBERAL-UTILITÁRIA

V. Novas, 22 de Agosto de 2016

Muitos daqueles que se afirmam liberais, de liberais não têm nada e o mais que papagueiam e repetem é aquela coisa em que nem sequer acreditam de «menos estado e melhor estado». A não ser que menor estado seja acabar com a saúde e a educação para que os amigos se lambuzem com o que isto possa dar e melhor estado seja viver liberalmente à conta do orçamento. Os nossos liberais querem o estado mínimo, porque para passar cheques liberais basta ter a letra bonita.

Pois é, os nossos liberais regem-se pelo que lhes dá jeito e dão a isso o nome de liberalismo, porque havia que dar-lhe um nome, gostam do termo, soa bem. Mas nunca leram qualquer obra a respeito. Neste aspecto, assemelham-se a um grande de número de católicos que, não tendo lido a Bíblia, sabem da poda, ao que julgam, por ter ouvido falar e atiram com a fé que dizem ter à cara de quem calha para se vangloriarem da sua superioridade moral. Usam a religião como quem usa shampoo ou creme facial, coisas de exclusivo uso externo.

Lembro-me de um Primeiro Ministro liberalíssimo que se inspirava para o ser na obra do Pai da Singapura moderna. Fazia-o para dar a impressão que tinha ideias sem se arrepiar com o peso do estado na cidade-estado nem com o «respeitinho» que ali reina.

Pode dizer-se que a melhor cartilha do liberalismo foi produzida pelo filósofo utilitarista Stuart Mill, o célebre Ensaio sobre a Liberdade, ou simplesmente, no título original On Liberty.

Eu sei que ler com atenção e reflectir sobre o que se leu dá muito trabalho; é bem mais fácil repetir lugares comuns, dizer o que se espera que digamos, estar na moda do dizer com a mesma displicência com que se usa o telemóvel para fazer luzinhas nos «concertos», porque os outros também fazem.

Mas, caramba! Um dia não são dias e há sempre uma primeira vez.

Daqueles que têm hábitos de leitura, mas torcem o nariz a coisas que cheirem a liberalismo, se não leram, leiam; se leram, releiam. É estimulante. Sobretudo, faz-nos perceber como cada liberal que nos aparece pela frente é invariavelmente um antiliberal que se desconhece.

Na contracapa da edição de Abril de 1973 (Arcádia) pode ler-se este apelo à leitura: «Quais os limites do poder que pode ser legitimamente exercido pela sociedade sobre o indivíduo? Qual a sua natureza? Posto neste plano – civil e social – o problema da liberdade encontra nesta obra clássica dos estudos que têm sido dedicados à luta entre a liberdade e a autoridade uma interpretação extremamente lúcida e actual. Para Stuart Mill a questão da liberdade pressupõe o valor do indivíduo de que depende o valor do Estado.

ENSAIO SOBRE A LIBERDADE põe assim o dedo numa ferida aberta neste nosso século brutalmente atraído pelas MEDIOCRACIAS TIRÂNICAS que reduzem o indivíduo à menoridade Mental».

Este posfácio, escrito em 1973, está perfeitamente actualizado.

Abdul Cadre

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

O QUE SABEMOS, O QUE CALAMOS E O QUE OPINAMOS

V. Novas 18 AGO 2016

Quando homens de grande e reconhecido saber dizem que apenas sabem que nada sabem, podemos duvidar que o façam por autêntica modéstia e presumir que o façam por não quererem ser tomados por vaidosos. De qualquer forma, sabem eles e sabemos nós que o saber é como o ar, tende a expandir-se, mas por mais que enchamos de ar um balão, do lado de fora haverá sempre muito mais e a expansão de dentro depende do ar que existe fora; se não houvesse essa pressão, o balão rebentava e o seu ar fugia.

Com a cabeça, se for nela que tudo se armazena, que nos sirva a metáfora, como dita a propósito do balão.

Segundo se diz, mais importante do que o saber é a sabedoria, algo muito difícil de definir, mas que supomos ser impossível armazenar; não é do domínio da quantidade: é uma qualidade, um modo de ser. Mas não cabe aqui falar disto, porque o que quero nesta oportunidade é falar de opinião.

Não me canso de dizer que ter opinião e ter umbigo calha a todos, não vale a pena andar por aí a apregoar, ufanos que se tem, porque, em boa verdade, o que importa é ter o umbigo bem limpinho, como sinal de que tomamos banho, e a opinião bem fundamentada, para que não nos tomem por relógios de repetição. Bom será, porém, que aquilo que nos saia da boca não venha por simples reflexo condicionado do mal de viver; bom será que sejamos capazes de ter para com a vida um sorriso de justa cumplicidade.

Por regras da natureza, o umbigo é fixo e não se lhe reconhece qualquer utilidade. Já a opinião, se a pessoa é inteligente, não se fixa, é plástica, móvel, reciclável e pode ser muito útil à comunidade. Mas não é assim nos empedernidos. Nestes, a opinião que dizem ter é fixa, imutável e disso se vangloriam.

A opinião dos empedernidos não se diferencia do umbigo, a não ser pela localização. A serventia é a mesma: nenhuma.

A opinião dos empedernidos é um tóxico social não reciclável, não ecológico. Mas, em bom rigor, a opinião deles não nasceu por eles, apenas neles ecoa, apenas por eles foi adoptada porque lhes dava jeito. É silenciada ocasionalmente nos momentos em que se suspeita poder trazer prejuízo. Os empedernidos, se pudessem dizer, sem que fossem olhados de esguelha diziam eu sei que tudo sei.

Isto talvez seja mais característico entre os portugueses do que no seio da maioria das culturas. Vem no nosso registo genético. É por isso que temos quase todos o mau hábito de falar primeiro e só pensar depois, se houver vagar.

Se quiserem fazer uma experiência muito simples e reveladora, ponham uma braçadeira de repórter de uma qualquer rádio e cheguem, de microfone em riste, junto de um qualquer transeunte e perguntem-lhe o que pensa da química do carbono e verão que recebem uma resposta pronta, que começa quase sempre por um acho bem (ou um acho mal, se o indivíduo estiver em dia azedo).

Porque se opina assim? Suspeito que seja para que não nos tomem por ignorantes. Era o que mais faltava!

Não sei se este fenómeno cultural tem a ver com certas práticas tolas das nossas escolas, como perguntar a um aluno que nunca leu Descartes o que é que ele pensa da sua filosofia.

Com certeza que é bom fazer perguntas aos alunos, mas melhoria seria ainda ensinar-lhes a perguntar e evidenciar-lhes que para bem pensar se deve falar metade do que se ouve, em respeito pela natureza, que nos deu dois ouvidos e apenas uma boca.

Mas será que, para ter opinião, é necessário ser muito instruído? Não! O que é preciso, para que não seja um tóxico, ou um simples ruído é que se tenha bom senso e que não se emita como opinião o que não passa de um desopilar dos maus fígados. O bom senso implica não me pronunciar sobre o que ignoro e, do que saiba, ter a noção de que outros saberão melhor, ou saberão diferente.

Eu sei que apelar ao bom senso é coisa de pouco senso, pois que bom senso é coisa de que ninguém se queixa de ter falta. Há até quem ache que tem mais bom senso que os demais.

Numa entrevista ao El Mundo, falando sobre o jornalismo dos nossos dias, que não faz qualquer uso do bom senso, dizia Umberto Eco que “todos os habitantes do planeta, incluindo loucos, têm hoje direito à palavra pública”. Veja-se o lixo das redes sociais e veja-se o nojo que são as “antenas abertas”. Veja-se também como certas publicações, pela pluma dos seus intriguistas encartados propagam o ódio, a maledicência e a calúnia.

Há, por exemplo, uma coisa com aspecto físico de jornal, propriedade de “empreendedores” angolanos, que tem uma tiragem enorme; será lido por mais de um milhão de angustiados ou correlativos. Estou convicto que à maioria será suficiente ler as parangonas; isso bastará ao seu azedume.

Trata-se de um instrumento alienante e tóxico, que mereceu de Pedro Marques Lopes, no Eixo do Mal, o epíteto de «esgoto a céu aberto». Não é um órgão informativo, mas sim desinformativo, deformador. Quem tome aquilo por sério e verdadeiro só tem um remédio: cortar os pulsos, ou dar um tiro na cabeça e fugir para a Espanha.

Como pode tal aberração ter o êxito que tem? Não sei responder. E não venham de microfone em riste para que eu responda…

Mas suspeito que a principal razão é precisamente ser aberrante. Outra razão: ser boa música de fundo para acompanhar o azedume dos portugueses, que vociferam contra tudo e contra todos, mas pouco cuidam dos seus direitos.

Direitos? Para quê, se os políticos – que ao que parece são extraterrestres – são todos uns malandros da pior espécie – que a minha mãezinha é que não – e o mundo vai acabar. E não há nada que seja culpa nossa, a culpa é dos outros, porque o inferno são os outros.

Sejam bons portugueses, façam os possíveis e os impossíveis por serem infelizes.

Abdul Cadre

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

O SEGREDO ESTÁ NO ESPELHO

Digo amiúde aos meus amigos: não me dêem conselhos, deixem-me errar por mim próprio. No entanto - deve ser da idade - é com frequência que não emprego a doutrina ao contrário. Querem conselhos? Não? Então eu dou: olhem os políticos, vejam-nos cheios de defeitos, de seguida digam ao espelho: tenho de corrigir isto e aquilo. E não vigiem quem deva ser vigiado, deixem isso à polícia. Vigiem a polícia. E não julguem quem deva ser julgado, deixem isso aos juízes. Vigiem e julguem os juízes. E, se se comprazem a tecer cobras e lagartos dos políticos, por favor, não votem neles ou terei de chamar-lhes nomes feios.

Abdul Cadre

LEIAM E DESINFECTEM-SE

Aprendam a não se excitarem com as notícias que são feitas precisamente com esse fim, porque essa coisa de comunicação social foi chã que já deu uvas e o que dá lucro a essa instância corruptora é a excitação. É com ela, manipulando as massas, que se dá lustro ao sistema. Os cães de guarda já estavam amestrados e de coleiras de veludo quando o Serge Halimi escreveu OS NOVOS CÃES DE GUARDA. É muito apropriado que se diga, em vez de comunicação social, corrupção social. Todavia, podem ler-se os pasquins sem sujar a mente. Por exemplo, procurar saber da intenção desta ou daquela notícia ou, melhor ainda, se lerem - será possível - o grande corruptor crime da manhã (ou correia da manha, como se lê na NET), basta este cuidado: onde eles escrevem preto deve-se ler branco, e vice versa.

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

LOUVADOS SEJAM OS EXCÊNTRICOS

V. N. 17 AGO 2016

Há muita gente que se esforça por saber como são as coisas, tanta quanto a que tanto se lhe dá, mas, felizmente – e é por isso que as coisas progridem e evoluem – há uns tantos inconformistas que se interrogam por que são elas de uma maneira e não de outra. Melhor, todavia – pena serem uma raridade –, é a dádiva dos excêntricos que inventam as coisas a que a maioria não liga, mas que fazem com que os esforçados aprendam e os curiosos se interroguem.

ABDUL CADRE

terça-feira, 16 de agosto de 2016

PENAS E FALSAS PENAS

Vendas Novas, 16 AGO 2016

Vivi em dois territórios muito distantes daqui (e muito distantes entre si) onde a maioria da população era muçulmana. Em nenhum deles as mulheres usavam véu e em nenhum deles levavam chibatadas. A poligamia era a regra, o divórcio fácil, o adultério não era sujeito a mais castigo do que o repúdio. Por isso, quando oiço as lendas da NET sobre o horror muçulmano fico com muita pena por haver tanta ignorância à solta a botar discurso, eu que vivi no tempo em que as mulheres portuguesas só passavam a fronteira com autorização dos maridos e que se um pobre casasse com uma rica era como sair-lhe a sorte grande, pois a lei dizia que ele era o administrador dos bens do casal; podia até dizer «olha, dos teus bens, só te dou tanto por mês, para os teus alfinetes». Há dias, um tal Sérgio remeteu-me pelo Facebook uma foto que aludia a 200 chibatadas a uma mulher, na Arábia Saudita, que havia sido violada por um grupo de energúmenos. Não sei porquê, o Sérgio esqueceu-se de dizer que a "pena" não chegou a ser aplicada, devido aos protestos internacionais que gerou. Este jovem também se esqueceu de dizer que isto se passou há vários anos, quando era presidente dos EEUU o Bush Jr. Por que será que o moço se esqueceu? Porque é preciso que haja medo. Que tenhamos todos muito medo. Medo do outro, do feio, daquele que não tem direito à humanidade. Mas forneceu-nos um remédio para curar a sua indignação, que até seria louvável, se não rematasse a coisa com imensos disparates, desde citações bíblicas até concluir que os muçulmanos deviam ser todos mortos. Não sei se no seu decreto incluía a mulher condenada às tais chibatadas, pois, ao que parece, também ela é muçulmana. Ou a morte era só para os homens? Ódio, racismo, xenofobia dá nisto.

ABDUL CADRE

DETESTO SENTIR-ME CANSADO

Vendas Novas, 16 AGO 2016

Detesto sentir-me cansado. Quando era jovem julgava que aqueles que se diziam cansados eram piegas ou mandriões. Hoje o corpo já me pesa, mas resolvo a coisa com uma boa soneca, o chamado ioga ibérico. Mas o pior é um outro tipo de cansaço, o cansaço de ver os jovens curvados (como se fossem velhos) à caça dos gambozinos, isto é, dos pokemons. Também me cansa a mentalidade inquisitorial que se está a instalar no mundo; petições por tudo e por nada: para impedir, para calar para proibir. Que saudades - que apenas deveria ter do futuro - quando nos muros de Paris se escrevia é proibido proibir. Outros tempos. Tempos de gente viva. Olho pela janela e entendo Fernando Pessoa no remoque aos cadáveres adiados que procriam. Aliás, já nem por isso.

ABDUL CADRE