domingo, 11 de dezembro de 2016

NO DESINFELIZMENTO DA VIDA

 

Era uma vez uma jovem bonita e bem-casada, vivendo aquela felicidade que só a classe média despreocupada, usando óculos escuros, consegue. Por não ter outros afazeres, olhava as montras da baixa com o olhar astuto dos viciados em compras. Eis senão quando, dobrando uma esquina, numa montra provocante, uns sapatos lindos de morrer se puseram a chamar por ela. «Não posso!», exclamou. Este não posso não quer dizer exactamente que não podia. Vocês sabem disso, não sabem?

Entrou na loja de rompante e gritou para o empregado: «quero aqueles sapatos». Não descrevo os pormenores do calça e descalça. Foi o trivial. De relevo apenas que, com os sapatos novos nos pés, pegou com as pontas dos dedos e ar enjoado nos que trazia e disse para o empregado: «Olhe, se não se importa, deixo isto para os pobrezinhos, percebe». Ela não disse percebe, claro, disse pecebe, que é como se diz em chiques.

Não esperou pela resposta e desandou em direcção ao parque de estacionamento onde deixara a viatura. Estava mais feliz do que no dia em que se casara.

Não estavam percorridos 500 metros e os sapatos lindos – quem vê caras não vê corações – desataram a morder-lhe os calcanhares com uma fúria que nem cão, desses das raças proibidas Mais 500 metros e não se conteve, atirou-se para o chão e desatou a berrar: «Ai, sou tão infeliz, que desgraça a minha!» Gritava que se desalmava e muita gente se acercou. Pobrezinhos, com certeza. «Que foi, minha senhora, morreu-lhe alguém?», perguntou um dos mirones mais afoito. Que não, que era bem pior, que estava mais infeliz do que quando lhe morrera a mãe.

E talvez não fosse caso para menos. Descalçou um dos sapatos e ali estava uma bolha enorme no calcanhar rosado.

ABDUL CADRE

Sem comentários:

Enviar um comentário