V.N. 28 Junho de 2021
Eu sou viciado em aforismos, todavia mais nos meus do que nos de terceiros. Quando cito aforismos de outros é por despeito de não ter sido eu a escrevê-los.Mas neste mundo das redes anti-sociais cita-se demasiado, por vezes deturpado, outras vezes atribuindo a autores de nomeada coisas que eles não escreveram nem escreveriam. Por exemplo, já tropecei dezenas de vezes no erro comum de atribuir a Voltaire aquela frase desconchavada de «eu não concordo com o que dizes, mas defenderei o teu direito a dizeres isso» – tem várias nuanças a frase, mas a ideia é esta – Voltaire não disse isto nem parecido.Mas há pior: atribuir a pessoa respeitada uma série de baboseiras tipo new age que a pessoa, pensando precisamente o oposto, nunca diria, .Andou por aqui, pela milionésima vez, aquela frase atribuída a Heraclito de não podermos banhar-nos duas vezes nas águas do mesmo rio. A frase foi mal citada, provindo com certeza de uma deficiente tradução; não referia as águas do mesmo rio, mas o rio. E Heraclito podia ter dito a frase dessa forma, porque ele não queria referir-se ao rio, mas ao tempo. Era uma metáfora para transmitir a ideia de como o tempo flui. Em outra frase diz assim: «Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio». A ideia é que o tempo flui, não se detém. Usando tropo similar, diz também: «Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos», querendo significa o perene devir. Similarmente, diz também: «Para os que entrarem nos mesmos rios, outras e outras são as águas que por eles correm».Mas quando nos debruçamos sobre o que disseram ou não disseram filósofos que não estão cá para confirmar ou desmentir as frases popularizadas, é bom que tenhamos em conta que não há grandes pensadores sem dizeres paradoxais. Agostinho da Silva assumiu sem constrangimentos quanto o paradoxo pode ser precioso num «livrinho» – não sei se foi publicado – que primeiro chamou de «Reflexões, Pensamentos e Paradoxos», que depois rectificou para «Pensamentos, Aforismos e Paradoxos».Ele escreveu no aforismo 14: «Ser ou Nada são os dois nomes que dou ao mesmo alguma coisa ou nenhuma, que não tem nome; à qual pôr um nome é sacrilégio».Eu respondi-lhe assim: «No acto mágico de matar – e possuir pelo nome é matar – é em nós que a magia resulta, e também naqueles que se nos submetem. Pelo nome todas as mortes são possíveis, e assim mesmo a de Deus. Morte actual e não real.»Façam leituras. De tudo o que leiam nada aceitem, mas que nada vos seja indiferente, ou perderam o tempo com a leitura. O papel aceita tudo. Quem aceita tudo o que está escrito faz de papel, não de leitor.Façam o favor de não ser infelizes, ou sejam felizes, se forem suficientemente egoístas e inconscientes.
ABDUL CADRE
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