quarta-feira, 8 de março de 2017

AS POSTAGENS E OS INDIGNADOS

VN 08 MAR 2017

Detesto o que quer que seja em data certa. Sobretudo detesto o dia dos pobrezinhos, o dia da mulher, o dia da criancinha, o dia dos indignados…

São exercícios de lavagem de consciências. Tem muito a ver com a crítica dos evangelhos aos fariseus, que davam esmola de modo que todos vissem. Esta esmola dos poderosos – este dia de qualquer coisa – é de tal modo farisaica que não se entende como os pseudo-beneficiados se sentem tão contentinhos.

Que bom seria podermos cantar com a Lena D'Água «todo o dia era dia de índio».

Mas a gente fica pacificada, coração ao alto. Há um dia – ou mais – para sermos todos bonzinhos. Que pena o ano ter tantos dias e nem todos se prestarem para treinarmos a bondade que não temos, se não houver dia para isso.

Indignem-se, dizem as correntes de mensagens electrónicas que nos enchem a caixa do correio. E a gente faz forward, comodamente sentados. A superficialidade dum tempo sem tempo, a indignação digital, o carpir como quem mia na esperança de receber um carapau, a solidão disfarçada na ilusão de que o mundo está à escuta do que dizemos, falar para não estar calado, exigir dos outros a santidade banal e pós-moderna de enfeitar o mercado das palavras...

Vamos apodrecendo na vida adiada que nem a esperança concede. Esperamos sentados. Indignamo-nos sem consequência. Toda a nossa raiva se esgota quando agredimos o teclado e premimos o rato como se o estrangulássemos.

Olho as campas rasas do imenso cemitério do Facebook e só me ocorre perguntar: há por aí algum corpo que ainda tenha sinais de vida?

Um cadáver levanta-se e vai à janela. Uma velhota tenta atravessar a rua, arrastando um cão pela trela. Um automobilista apressado buzina-lhe ferozmente e atira-lhe duas bocas foleiras.

O cadáver deixa o mundo como está e volta indignado para o teclado.

Será que isto que estou a dizer pode motivar indignações avulsas nas redes sociais? Não creio, até porque não comecei este escrito com a ordem habitual do indignem-se. E se não houver essa ordem, ou esse lamiré, nada feito.

De qualquer modo, as indignações postadas em forwards da NET pouco sensibilizam as pessoas verdadeiramente sensíveis. Talvez eu nem sequer pertença a esse pequeno número, mas o facto é que também pouco me sensibilizam, mesmo que às vezes me incomodem, num incómodo assim como ter piolhos. Mas tal como há remédios extremamente eficazes para nos livrarmos dos piolhos, há nos nossos teclados uma tecla tão boa quanto o Quitoso, a tecla DELETE.

Quem sabe usar o delete não é atingido pelas indignações de faz de conta.

Sabem uma coisa? Perdi a capacidade de me indignar. Os indignados têm-me esgotado a paciência e a sua hipocrisia gela-me o sangue. Sinto-me um crocodilo fora de água e as nuvens toldam-me o sol.

Mas não posso deixar de me sentir incomodado quando oiço os vociferantes de pantufas quentes a arengar contra refugiados e emigrantes, no seio dos quais, dizem eles com manha, podem vir terroristas. Alguns dos vociferantes têm-se em tão boa conta, sentem-se tão acima de tudo e de todos que discursam acerca da subhumanidade que decretam para quem sofre, foge e não veste bem. Tais inquisidores bateriam palmas a qualquer solução final, mas não o declaram porque, por enquanto, parece mal…

Vão-se indignado com coisinhas de forward e de delete e nem querem ouvir falar que descendem – eles e todos nós – de violadores, antropófagos e homicidas; passam adiante as páginas de que não gostam dos manuais onde se conta a História da Crueldade Humana.

A compaixão não é o seu forte e a crueldade não lhes sai do íntimo.

Ai, quanto eu gosto do Pessoa! Quanto eu entendo e comungo da sua aversão à companhia. «Que maçada, quererem que eu seja de companhia», eu que não me indigno com quanta coisa que postiçamente se usa para dizer ao mundo e à cidade que estamos vivos e temos sentimentos que extravasam o nosso umbigo, e temos compaixão, embora apenas pela ordem da batuta. Conforto é o que queremos, esconjurar a dor ainda mais.

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