quarta-feira, 8 de março de 2017

UM OLHAR DE VIÉS

VN 08 MAR 2017

Convém lembrar aqui o que tantas vezes tenho dito: as ditaduras minoritárias fazem por transformar as maiorias em carneiros que se pastoreiam e tosquiam; as ditaduras de maioria, ditas democracias, fazem dos carneiros que balem mais alto chefes de rebanho, pregadores de redil a bem da tosquia e da boa lã.

Aquilo a que o vulgo chama democracia é apenas um sistema sufragista que não põe em causa os poderes fácticos. Neste sistema, o voto de um bêbado tem o mesmo valor do de um sóbrio; o voto de um assassino vale o de uma pessoa de bem.

É este sistema que permite os Trump e os Hitler. A sua característica é a glorificação do mau gosto, do mau cheiro e da rasteirice.

Os bem-pensantes, que em boa verdade o não são, apenas assim se julgam, usam e abusam, quando as coisas não saem do jeito que gostariam, da lamentação ferrugenta de que o povo não sabe votar. Ora, é claro que o povo sabe votar, é fácil, demasiado fácil: é pôr uma cruzinha num quadradinho; o que o povo não sabe é da inutilidade do seu voto; não sabe que com ele reza a impotentes santos de palha.

Um dos grandes problemas das análises políticas é a divisão povo/políticos, como se os políticos fossem extraterrestres e não emanações do povo, reflexos do que nele há de melhor e de pior. Depois, o que acontece é um fenómeno de retroalimentação que, quando no sentido do bem, conduz ao progresso, quando no sentido do mal à decadência.

A grande diferença entre os políticos efeitos e os cidadãos anónimos é que uns estão na montra e os outros não; uns estão perto da massa e os outros não.

Não é preciso lembrar o ditado popular – ou é? – de que a ocasião faz o ladrão. Sendo assim, nem os manetas se isentam, porque na ocasião usam os pés, na mesma lógica de que quem não tem cão caça de gato.

Combater o ladrão e não impedir a ocasião é trancas à porta depois de casa roubada.

Os políticos têm exactamente os mesmos defeitos do povo em geral a que pertencem, porque foi desse útero que vieram.

A indignação pelo mau comportamento de figuras públicas vem de sectores minoritários, porque se viesse de claras maiorias não haveria corrupção, toda a gente estaria atenta.

O abastardamento social que caracteriza as sociedades decadentes é bem possível que seja uma necessidade, pois que sem estrume não se criam novas e viçosas plantas.

Quando os populares chamam ladrão ao político que elegeram e não impediram que roubasse estão apenas a esconjurar os seus próprios fantasmas, os seus esconsos pecados. Atente-se também na permissividade expressa no célebre e estafado slogan do rouba, mas faz.

Quem vota, não vota por raciocínio, por conhecimento, mesmo que ligeiro, de qualquer programa eleitoral, vota por identificação.

Com certeza que haverá coisas que o povo odeia e que poderão condicionar o seu voto no sentido do «voto neste para aquele não se ficar a rir». Não será má vontade dizer-se que na lista daquilo que o povo mais odeia não estará nem a violência nem o roubo. É verem-se os resultados das votações em gente pouco recomendável. O que o povo odeia sobretudo é a verdade, a liberdade e o bem-estar alheio.

Quem vota exprime – assim como quem bota vela no altar – o desejo de boa vida com pouco esforço. Acontece que os «pobres» eleitos, não podendo dar disto a todos, servem-se do ditado popular, que os eleitores sabem de cor, que quem parte e reparte e não fica com a melhor parte ou é tolo ou não tem arte.

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