sexta-feira, 4 de outubro de 2019

NÃO SE LAPIDA FAZENDO CÓCEGAS

«O povo nunca é humanitário. O que há de mais fundamental na criatura do povo é a atenção estreita aos seus interesses, e a exclusão cuidadosa, praticada sempre que possível, dos interesses alheios».

FERNANDO PESSOA

Livro do Desassossego.

Não fui eu quem disse, foi o Pessoa desassossegado, mas dou nota 17 ou 18. Repetindo-me: o povo é o sítio de onde todos vêm e para onde ninguém quer voltar, tal como ninguém quer voltar ao útero materno. Acontece, todavia, que há homens e mulheres – mais os homens do que as mulheres – que não saem bem paridos e sofrem muito de foto-fobia. Chama-se-lhes, por vezes, imaturos, mas aqui há que ter algum cuidado, porque a fronteira entre o maduro e o podre é muito ténue. De qualquer forma, tal como os pássaros abrem as asas e voam, tal como o Fernão Capelo Gaivota se atreve, a regra de crescer é enfrentar a luz, não o regresso à caverna ou ao útero. Da caverna quem bem sabia era o Platão, do útero todos sabem, mas muitos esquecem sem o benefício da experiência havida.

Quando falamos de povo estamos a abusar do conceito, ao tomar por concreto aquilo que é uma abstracção, porque se trata de olhar a massa sem ver o indivíduo. Por isso, perante aqueles que deificam tal abstracção, eu pergunto tantas vezes: o que é povo, o Pinto Balsemão ou o trolha que espanca a mulher? A Madre Teresa de Calcutá ou o Charles Mason? A velhinha que dá comida aos pombos ou o carteirista dos eléctricos da carreira 28? Os políticos ou os que elegem e os que não elegem os políticos?

O conceito de povo é demasiado equívoco, mas o que mais se vê é muita gente tentando enganar-se a si própria e aos outros, invocando o povo com aquele jeito mimético de quem está na missa a receber a hóstia para se sentir bonzinho e ter desculpa para as maldades que não renega. E não renega porque é autenticamente povo e povo é o lugar de todos os vícios, superá-los é superar a condição de povo.

É no povo que estão as células estaminais, povo-útero onde se gera a placenta que alimenta o feto, que nada impede que chegue à luz como um nado morto. É daqui que se imagina ter de Pessoa saído o verso dos cadáveres adiados que procriam.

Mas o que mais embala o sentir comum é a ilusão, porque nada dói tanto como a lucidez. O lúcido salva-se da desilusão, porque não se ilude, mas está condenado a ver a vida na sua profundidade e crueza.

Não se sabe como é que as pessoas com a boca cheia de povo conseguem ter apetite para o almoço, mas quiçá sejam como uma gata que eu tive, que devorava a placenta logo que acabava de parir.

Bolçam povo com as palavras os políticos que mendigam aprovação; bolçam peçonha, fingindo defender o povo, os parasitas anti-sociais que fazem dos políticos os seus bodes expiatórios para amenizar as suas frustrações, negam aos políticos a condição de terem sido paridos pelo povo; os pendurados no povo têm a si próprios em tão elevada condição que se sentem os seus tribunos, embora inúteis, que no fundo suspeitam ser.

O que é que eu queria que o povo fizesse?

Mas eu não tenho receitas para o povo, nem coisas para dizer que sejam populares. Gostaria que os escravos que são escravos da sua própria condição conseguissem estar acordados pelo menos 10 minutos por dia, embora saiba que é pedir muito. Gostaria que os que conseguiram chegar a um meio despertar não se orgulhassem do umbigo, porque umbigo todos têm e há coisas mais acima, menos feias. Mas se calhar é também pedir muito.

O que eu verdadeiramente gostava, mas não sei nem posso, era chicotear-lhes os olhos, os ouvidos e a língua até que a vida lhes doesse. A vida, não a sobrevida.

Mas nunca me atreveria a despertar quem dorme a sono solto, nunca se sabe do mau feitio dos estremunhados. Se aplicarmos a lei da inércia, quem dorme não quer acordar, quem está acordado não quer dormir. E assim se estabelecem dois mundos inconciliáveis.

Os diamantes são foscos, quando estão adormecidos. Para lhes libertar o brilho é preciso lapidá-los. Não se lapida fazendo cócegas.

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