domingo, 11 de março de 2018

CURSO, DECURSO, RECURSO, PERCURSO E DE TUDO ISTO O DISCURSO.

Engraçado, em castelhano, a palavra recorrer quer dizer coisa bem diferente do que parece, significa percorrer.

Na juventude, escrevi uma espécie de poema que não queria significar coisa nenhuma e dizia mais ou menos o seguinte: «Na osmose pose do meu corpo barro, quando ex-barro me esbarro e em desespero espero…» etc. e tal, que já não me lembro bem.

Isto para dizer que para além do cuidado com coisas de importação, seja de palavras vindas da estranja, seja de outros contextos, haverá que ter um cuidado redobrado com o que à literatura, e em especial ao discurso poético se exige: a assunção de uma metalinguagem, que cabe apenas à literatura e se tem de negar, como é óbvio, à prosa de serviço, aos manuais.

O jovem Luís Coelho remeteu o aforismo abaixo, que partilhei na minha rede do FB:

«A melhor maneira de perder o curso da Vida: fazer um curso académico».

Ora, isto mereceu crítica viva, em especial da nossa querida amiga RS, que, salvo melhor opinião tresleu a frase.

Vamos lá ver algumas nuanças e dimensões da mesma. Comecemos por notar a letra maiúscula de Vida, que nos leva a uma primeira leitura: a vida académica não é verdadeiramente vida, mas as mais das vezes o seu contrário. Junte-se a isto a divisa dos argonautas, tão cara a Fernando Pessoa: «navegar é preciso, viver não é preciso». Se virmos navegar no sentido de cursar, como o cursar académico, o aforismo do Luís justifica-se em linguagem linearmente lógica e o que ele diz torna-se uma verdade insofismável: o curso académico diz à vida que ela não é precisa. É claro que nós preferíamos dizer que viver é preciso, desfolhar sebentas não é preciso.

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Cabe dizer-se que eu aprendi em pormenor a aplicação do direito entre os romanos, sendo uma pena não haver romanos a quem eu possa aplicar esse meu academismo.

O irmão do meu saudoso amigo António Telmo, o professor Orlando Vitorino, um dos últimos representantes da "Filosofia Portuguesa", chamado um dia a pronunciar-se sobre o ensino, disse mais ou menos isto, que eu não estava lá para ouvir: «Ó Sr. Ministro, se quer fazer alguma coisa de útil pelo ensino, feche todas as escolas, a começar pelas universidades».

Estes seus dizeres não eram novidade, no prefácio que fez a Ensaio Sobre a Liberdade, de Stuart Mill, publicado pela Arcádia, em 1973, diz sobre a universidade:

«… deveria ser extinta porque era «herdeira de todas as limitações ao desenvolvimento intelectual e de todas as proibições de informação cultural e científica ancestralmente atribuídas a organizações que, no progresso de actualização, as vieram abjurando, como as do ensino e da censura eclesiásticos».

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Quando o Professor Agostinho da Silva admoestava quem lhe falava em pedagogia e em pedagogos, logo tratava de dizer que pedagogo era o escravo que, na Grécia Antiga, impedia o menino de ter tempo livre, ou seja, tornava-o mais parecido consigo próprio.

E que tal lembrar aquela canção dos Pink Floyd, Like a brick in the Wall?

Perde-se o curso da vida quando se vai de percurso pela academia, discorrendo sobre o que foi e já não é. Quem vai pela academia tem todo o direito de ir e gritar bem alto: desfolhar é preciso, viver não é preciso. Terá até razão, se disser o curso da minha vida é o curso da minha academia; a minha vida é a corrente académica.

Penso que o grande qui pro quo da leitura da nossa querida amiga RS é estar a confundir a palavra curso, que deveria ser entendida como fluir, que é o que faz a vida, fazem os rios e fazem os ventos, com o que mais correntemente se usa, o que inevitavelmente conduz a entender-se conquista de um grau académico, coisa que até pode bem ser um atraso de vida.

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