segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

AMANHÃ O LEVIATÃ

Histon, 31 DEZ 2018

Por via do nosso condicionamento moral, mental e comportamental, cada um de nós age pelo padrão de cultura que lhe coube, dado que é fruto da cultura onde nasceu. Neste lado do mundo onde decorre a nossa circunstância, mesmo os mais livres e de maior espírito crítico não conseguem isentar-se das sequelas nefastas do judaico-cristianismo, que se desenvolveu por milénios, criando uma moral de base inquisitorial, cruel, impiedosa e hipócrita, onde tendemos às separações irredutíveis: nós e eles, nós os bons, eles os maus. É comum negar-se a humanidade aos que são diferentes, aos que crêem, pensam e agem diferentemente de nós.

Este é o nefasto entendimento, o substrato dos comportamentos ostracizantes de muitos grupos sociais; o alimento ideológico dos que pensam, mesmo que o não digam que «quem não é como nós nem a vida lhe devia ser permitida». Esta perversidade, tida por muita gente como já curada, não o foi, o vírus encontrava-se apenas adormecido e ela aí está rediviva a espalhar-se pelo mundo.

Mais do que no passado, esta lepra encontra hoje as mais propícias condições de contágio: meios de comunicação eficientíssimos, ainda por cima gravemente infectados de mercado e amoralismo; condições sociais e cibernéticas favoráveis à cultura virulenta.

Os ingénuos não podem deixar de ver os sinais que não querem ver, mas esforçam-se por acreditar que assobiando a coisa passa. Fazem por diminuir as apreensões dizendo que os movimentos ameaçadores a que assistem são inorgânicos, e assim pode ser que não seja nada. Também foi assim na Bizâncio cercada: os que a deviam defender discutiam o sexo dos anjos. Pensam até, erradamente, que os sistemas sufragistas, a que chamam democráticos, têm condições para superar a crise, mas não têm, principalmente por não serem verdadeiramente democráticos, mas tão-só sufragistas, e o sufragismo permite que se sufrague o fim do sufrágio.

Agrava o entendimento do problema a crença comum de que o mal advém dos líderes populistas, mas isto é ver as coisas do avesso. Não são tais líderes, simples oportunistas de ocasião, que fazem o populismo, é o populismo que faz esses líderes. O líder aparece – populista ou não – como fruto de uma invocação mágica das massas.

Sou muito criticado quando digo que atrás da orelha de cada português, por mais democrata que se afirme, há sempre um Salazar que sussurra. Entenda-se com isto que Salazar já ali sussurrava antes de ter nascido e continuou a sussurrar depois de ter morrido, porque não se trata de uma pessoa, de um indivíduo, trata-se de um arquétipo. Se houver muita gente a ouvir, prestando atenção aos sussurros, forma-se a massa crítica necessária para a desgraça conhecida de sempre.

Amanhã, no Brasil, uma figura boçal e caricata toma posse como presidente da Federação. Clone mimético do mussolínico Trump, Bolsonaro é um arquetípico, como o foi Salazar para os portugueses e Hitler para os alemães. Não vale a pena perguntarmo-nos se o que foi antes tragédia vai ser agora comédia; trata-se do mesmo drama. Mesmo que uns tantos possam rir, a maioria há-de chorar.

Bom, mas o que importa reter é que não são os bolsonaros que impulsionam os fenómenos, eles são impulsionados, eles são catalisadores, quem impulsiona são as massas ignaras e ululantes desejosas de pastor; são elas que entronizam quem as possa tosquiar.

Estas monstruosidades humanas conduzem as massas à desgraça, não porque queiram precisamente isso, mas porque as massas desejam e precisam, porque as massas fazem a invocação.

Se quiséssemos usar a própria linguagem das milícias evangélicas brasileiras que levaram o Mito aos ombros até ao poder, toda a mitologia apocalíptica e as referências ao anticristo assentariam como luva. Em Bolsonaro, até o episódio das facadas, provavelmente fictício, tem uma carga simbólica enorme. Estes líderes são, sob este ponto de vista, o Leviatã, nascem da irracionalidade, agem pela bestialidade.

Amanhã, toda a lusofonia estaria de luto, não fosse haver demasiada gente a pensar que não há defunto.

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