sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

A CRENÇA E OS ANTOLHOS

Distinga-se a crença que leva à cegueira e à submissão aos redis das igrejas da crença que leva à confiança, seja por motivos de boa consciência e urbana convivência, seja por necessidades e utilidades várias infundidas pelo viver em sociedade. Por exemplo: uma nota de vinte euros vale o que vale apenas porque se confia que valha, porque perdida a confiança entra em processo venezuelano de desconfiança.

Mas o que importa dizer-se é que a crença, nos crentes, funciona como os antolhos nos animais que puxam à nora.

Não vale a pena, perante os crentes, apelar ao uso da razão, porque esta se encontra numa licença sem vencimento indiferente a quaisquer invocações, o que o crente tem sempre ligado em alta voltagem é a emoção.

Por vezes, usando-se da mais inteligente e subtil criatividade, visando desarmar irracionalidades doentias, o tiro sai pela culatra, os crentes logo se agarram ao que se lhes nega, dando a volta ao texto. É o caso, por exemplo, do famoso paradoxo do gato de Schrödinger. Schrödinger, um pertinente crítico dos limites da Mecânica Quântica, criou esse paradoxo para demonstrar a não universalidade da teoria, para a remeter ao seu estrito lugar na Física Teórica, que é a do mundo subatómico, pois já no seu tempo tudo se queria subsumir àquela novidade teórica, inaplicável fora do seu campo exclusivo, e que nasceu devido a uma enorme insuficiência investigativa, que era não existirem, e não existirem ainda, instrumentos capazes de entrar no infinitamente pequeno. Ora, como quem não tem cão caça de gato, a forma consagrada de penetrar esse mundo por processos criativos mentais foi a solução; criaram-se, desenvolveram-se e testaram-se modelos teóricos. Teóricos. É por isso que a Mecânica Quântica só pode ser encarada como teoria, é um ramo da chamada Física Teórica.

Todavia, os crentes no nome, que não no conceito, esgrimem o termo quanta a propósito de tudo e a propósito de nada. É assim que há crentes que se permitem apelar aos crédulos que se inscrevam nos seus milagrosos cursos de cura quântica e idiotices similares. Vigarices, diria eu. Cura quântica seria, obviamente, algo baseado no princípio da incerteza, isto é, o paciente tanto se podia curar como não se curar, tal como o gato de Schrödinger tanto podia estar vivo como morto.

Mas em outros campos, seja na arte, na política, na caça aos gambozinos, a crença a poluir o conhecimento é o pão nosso de cada dia.

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